terça-feira, 23 de outubro de 2012

MAÇONARIA. SOCIEDADE SECRETA OU DISCRETA?



Envolta em inúmeros mistérios a Maçonaria é motivo de muita curiosidade, mitos e lendas. Com o decorrer do tempo o imaginário coletivo atribuiu a ela elementos que jamais estiveram presentes ou, por outro lado, negou outro tanto que são permanentes. Em ambos os casos não é nada difícil detectar-se interesses (nem sempre louváveis) que pleiteiam atendimento, quer gradualmente, quer de forma mais imediata. Uma das teorias sobre a origem da Maçonaria refere-se à construção do Templo de Salomão, por volta do século V antes de Cristo, quando este rei contratara o arquiteto Hiram Abif, mestre em entalhar pedras, que ensinou a poucos privilegiados esta arte. Ao término da obra três artesãos exigiram que lhes contasse os segredos e, diante de sua recusa, foi assassinado, mas tal teoria nunca foi comprovada. Há teses que defendem sua origem no Egito dos faraós ou na Grécia Antiga. Mas foi na Idade Média que se estabeleceu comprovadamente. De acordo com vários historiadores sua origem remonta as corporações de mestres-pedreiros construtores de igrejas e catedrais constituídas na Idade Média (guildas). Porém, de acordo com outros historiadores, a Maçonaria foi influenciada pela Ordem dos Cavaleiros Templários (Soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo de Jerusalém), a mais importante ordem religiosa militar do período medieval. De qualquer maneira é uma instituição muito antiga, sólida e muito mal compreendida até mesmo pelos seus mais ferozes adversários.


 Desde a Antiguidade, os construtores que detinham conhecimentos especiais, constituíam uma espécie de aristocracia, em meio das demais profissões. Formavam como que colégios sacerdotais (Collegias Fabrorum). Na Idade Média, os construtores de catedrais e palácios eram beneficiados, por parte das autoridades eclesiásticas e seculares com inúmeros privilégios tais como: franquias, isenções, tribunais especiais, etc. Daí a denominação francesa de franc-maçon traduzida como pedreiro-livre. Ao pé da letra Maçonaria significa Associação de Pedreiros Livres. A Maçonaria só admitia elementos que praticavam a construção. Podemos dividi-la em três períodos, a saber: o antigo ou lendário (primitiva) que abrange todo o conhecimento herdado do passado mais remoto da humanidade até o advento da Maçonaria Operativa; o medieval ou operativo, associação de cortadores de pedras verdadeiros, que tinha como ofício a arte de construção de catedrais, castelos, muralhas etc. e moderno ou especulativo, nesta fase utiliza os moldes de organização dos maçons operativos aliado a ingredientes do pensamento Iluminista, rompe com a Igreja Romana e promove a reconstrução física da cidade de Londres, após ser destruída por um grande incêndio em 1666 tornando-se o berço da Maçonaria Regular. Os pensadores e alquimistas da época, combatidos, perseguidos, presos e mortos buscavam refúgio entre os pedreiros livres, capazes de protegê-los pelos privilégios que tinham. Desta forma temos os Maçons Aceitos em contraposição dos Maçons Antigos, isto é, os construtores. Contudo nem todos eram aceitos após uma sindicância. No século XVI o número de Maçons Aceitos era considerável e predominavam os Rosa-Cruz ingleses. Mas a Maçonaria a partir daí ao invés de erguer catedrais, castelos e edifícios passaram a ter como objetivo a construção do edifício social ideal.

Constituição de Anderson

A partir de 1646 foi organizada uma sociedade com o objetivo de construir o Templo de Salomão, templo ideal das ciências. Elias Ashmole (1617-1692), antiquário, político, oficial de armas e estudante de astrologia e alquimia britânico, obteve permissão para que a sociedade realizasse suas reuniões no Templo Maçônico. De pouco em pouco, os elementos precedentes da Fraternidade Rosa Cruz (Instituição secreta que presumidamente dedicava-se ao estudo do esoterismo, alquimia, teosofia e outras ciências ocultas) passaram a preponderar na Maçonaria, introduzindo nela muito de seus símbolos. Alteraram os rituais, sobretudo a parte referente à iniciação. Inicialmente a hierarquia maçônica estava restrita a aprendiz e companheiro, o título de mestre era concedido apenas aquele que dirigia uma construção. Ashmole criou o grau de Grão-Mestre firmando a hierarquia da sociedade. No final do século XVI a Maçonaria abriu suas portas para qualquer homem de bem que nela desejasse ingressar e é neste momento que nasce a Maçonaria Moderna ou especulativa ou filosófica. Em 24 de junho de 1717 é que se forma em Londres a primeira Grande Loja Maçônica. A partir de 1719 a Maçonaria desenvolveu tendências filantrópicas. Em 1723 foi aprovado o Livro das Constituições maçônicas (Constituição dos Maçons Livres), elaborada por James Anderson (1679-1739), presbítero londrino e diplomado em filosofia, documento também conhecido como a Constituição de Anderson e a maioria das lojas a adotaram. Tal documento propaga uma doutrina humanitária, deísta espiritualista, aberta a todos os cristãos, qualquer que fosse a sua seita, e leal aos poderes públicos. A Maçonaria concede a seus membros a liberdade de culto e exige de seus membros a crença em um único Deus, “O Grande Arquiteto do Universo”, referência ao Criador do mundo material independentemente de uma crença ou religião específica. Entretanto, este conceito não existe no Budismo, posto que para este não exista começo nem fim, criação ou céu, ao contrário do Hinduísmo que em seu texto máximo o Rig Vedas diz que no começo dos tempos o mundo estava submerso na escuridão. De qualquer maneira, com ligeiras modificações, as Quatro Nobres Verdades e os Oito Nobres Caminhos estão presentes na doutrina maçônica. Sua origem medieval está presente em seus símbolos que são instrumentos de trabalho de pedreiros como, por exemplo, o esquadro, o compasso, o prumo, a régua, o nível, etc. Todo maçom deve ter como premissa a construção. Construção do templo da virtude e da verdade, construção de si mesmo, de seu caráter e de sua personalidade. Construção de um mundo melhor.

Papa Clemente XII

O papa Clemente XII (1652-1740) na bula papal denominada In Eminenti Apostolatus Specula de 28 de abril de 1728 acusa os maçons de heresia ameaçando os católicos que da Maçonaria se aproximassem seriam excomungados. Depois desta primeira condenação seguiram-se mais de vinte sendo que a última data de 1902 pelo papa Leão XIII (1810-1903) chamada a encíclica Annum Ingressi onde alertava a todos os bispos um combate eficaz contra a Maçonaria. Na Itália, Polônia, Portugal e Espanha os maçons foram perseguidos pela Inquisição e condenados a morte. A partir disso os maçons passaram a se reunir secretamente obrigando-os a não revelarem sua condição de maçom. A proibição da Igreja Católica de seus fies tornarem-se maçons se respalda, basicamente, na ideia de que a sociedade cultue a divinização do ser humano, porém isso não significa que todos os maçons deem sua adesão a esta doutrina e, considerando que uma Loja não sabe o que a outra está fazendo, a Maçonaria não pode ser considerada como uma entidade unificada nem em escala nacional. Portanto, está longe de se constituir num poder secreto com o objetivo de denominar o país, o continente ou o mundo como querem crer alguns.

Bandeira do estado de Minas Gerais

A primeira Loja Maçônica no Brasil foi fundada em Salvador no ano de 1724. Não se pode negar a participação da maçonaria em momentos decisivos da História do Brasil. Na Inconfidência Mineira a Maçonaria estava presente. Todos os conjurados, sem exceção, pertenciam à Maçonaria: Tiradentes (1746-1792), Thomas Antonio Gonzaga (1744-1810), Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), Alvarenga Peixoto (1742/44-1792/3) e o traidor Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819). Francisco Antonio Lisboa (1730 ou 1738-1814), o Aleijadinho, pertencia à ordem maçônica. Em suas obras podem-se notar símbolos da maçonaria como os três anjinhos formando um triângulo, um dos símbolos da sociedade. A bandeira do estado de Minas Gerais com o triângulo inspira-se no delta luminoso, o Olho da Sabedoria.



D. Pedro I (1798-1834) foi iniciado na Loja Maçônica Comércio e Artes nº 1 do Grande Oriente do Brasil, no Rio de Janeiro, no inicio de agosto de 1822 e no dia 22 do mesmo mês os maçons se reuniram redigindo um documento que declarava a independência do Brasil. Portanto, o grito de independência já estava decidido. Ninguém ignora também que o Brasil já estava praticamente desligado de Portugal, desde 9 de janeiro de 1822, o dia do Fico, articulado pela Maçonaria sob a liderança de José Joaquim da Rocha (1777-1848) foi fundado o Clube da Resistência, o verdadeiro organizador dos episódios de que resultou na decisão de D. Pedro I permanecer no Brasil. A libertação dos escravos foi uma iniciativa da Maçonaria, note-se que os líderes abolicionistas eram maçons (Visconde de Rio Branco, 1819-1880; José do Patrocínio, 1853-1905; Joaquim Nabuco, 1849-1910; Eusébio de Queiroz, 1812-1868; Quintino Bocaiúva, 1836-1912; Rui Barbosa, 1849-1923; Cristiano Otoni, 1811-1896; Castro Alves, 1847-1871). Na Proclamação da República os maçons também estiveram presentes. A República brasileira existe pela aliança da Igreja Católica com uma seção da Maçonaria que estava descontente com o imperador que, por seu turno, era maçom. O primeiro ministério da República, sem exceção de um só ministro, foi constituído de maçons organizado por Quintino Bocaiúva, que havia sido grão-mestre.

Interior Loja Maçônica na Pensilvania, EUA

Interior de Loja maçônica no Brasil


Senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) e o ex-governador José Roberto Arruda

Não é adequado identificar a Maçonaria como sociedade secreta, posto que o conceito de secreta nos remeta a algo que não pode ser revelado. Seus locais de reunião e horários são conhecidos, suas propriedades, Constituições, Emendas, Regimentos e Estatutos são registrados em cartório de imóveis, títulos e documentos e publicados em Diário Oficial e sua existência não é negada por seus membros, portanto, não se enquadram na definição de secreta. Contudo, os rituais para a admissão e os sinais para que os maçons se reconheçam são secretos, mas isso pode ser definido como algumas ações reservadas que interessam somente aos seus membros. No vocabulário maçônico moderno a palavra segredo traduz-se por discrição. A Maçonaria não é uma religião ou entidade antirreligiosa, posto que seus membros devam afirmar a crença em um Deus, as Lojas são independentes e algumas se utilizam da Bíblia, do Torá ou do Alcorão em suas reuniões e tal diversidade abre espaço para diferentes interpretações dos símbolos maçônicos. Não é um partido político, pelo menos dentro da definição formal e moderna; também não está caracterizada como uma sociedade de auxílio mútuo, porém quando um de seus membros precisa ser socorrido a entidade mobiliza-se em seu auxílio dentro das possibilidades de seus membros. Porque, caso fosse, então haveríamos de assim também classificar as Igrejas que socorrem seus membros. A Maçonaria não convida ninguém para dela fazer parte, a pessoa interessada é que deve procurar, espontaneamente, uma Loja ou ser indicado por um Mestre Maçom. E há um número expressivo de exigências a serem cumpridas pelos candidatos de ordem legal (maioridade, integridade, emprego e domicílio fixos, etc.), doutrinária (crer em um Deus, religiosidade, distinguir religião de Maçonaria, etc.), prática (apresentar bons costumes, ter boa família, cumprir as leis), metafísica (receptivo às ideias, alinhar-se ideologicamente à ideia de Deus), tradicional (apto, disposto, capacitado) e iniciática (respeitar o processo, os candidatos devem ser aceitos por todos os maçons, submeter-se à sindicância, assumir compromissos e responsabilidades, etc.). Apesar da rigidez das normas para o ingresso na Maçonaria ela também apresenta falhas como qualquer outra instituição humana, exemplo disso é o ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda (preso e cassado por corrupção) que dela fizesse parte sendo Mestre Maçom Grau 3 da Augusta e Respeitável Loja Simbólica “Areópago de Brasília”, nº 3001, filiada ao Grande Oriente do Brasil, no DF. O ex-governador José Roberto Arruda colocou em seu governo alguns companheiros de Maçonaria. Entidades ligadas aos maçons foram favorecidas com contratos com o governo do Distrito Federal. Uma delas é a Fundação Gonçalves Ledo que, sem participar de licitação pública, foi contemplada com um contrato de mais de R$ 30 milhões, via Secretaria de Ciência e Tecnologia (Projeto DF Digital). Arruda foi expulso, mas o estrago já estava feito.


 Grande Oriente Feminino do Mato Grosso do Sul

Uma das questões que mais alimenta o imaginário coletivo é quanto a não admissão de mulheres em seu seio. De acordo com o que apuramos a entidade mantém-se fiel a uma antiga regulamentação que diz, textualmente, “As pessoas admitidas como membros de uma Loja devem ser homens bons e de princípios virtuosos, nascidos livres de idade madura, sem vínculos que o privem de pensar livremente, sendo vedada a admissão de mulheres assim como homens de comportamento duvidoso ou imoral.” Afirma-se, pois, que estão seguindo apenas uma tradição herdada dos antigos maçons operativos. Ressaltamos que em algumas raras ocasiões algumas mulheres chegaram a acessar várias corporações antes da Maçonaria especulativa. No imaginário popular atribuem-se inúmeras razões para o fato da entidade não admitir mulheres, mas a Igreja Católica restringe o acesso das mulheres aos seus postos mais visíveis e também de comando e nem por isso vê-se envolta em questionamentos que sugiram mistérios, rituais secretos e coisas piores. Mesmo após o movimento feminista deflagrado na década de 1960 e as suas inúmeras conquistas a mulher ainda sofre discriminação, explícita ou implícita. Na Maçonaria existe a Ordem Internacional Arco-Íris para Meninas da Ordem Internacional DeMolay fundada em 1919 em Kansas, Missouri, EUA, (Jacques DeMolay foi o último dos cavaleiros Templários executado pela Inquisição em 1314). Até 1949 a Maçonaria feminina atuava em conjunto com o Grande Oriente do Brasil e a partir deste ano seguiram sozinhas e denomina-se Grande Oriente Feminino do Brasil. Há uma imensa gama de artigos escritos satanizando a Maçonaria com uma ferocidade assombrosa. No entanto, em todas as refutações que tive a oportunidade de estudar os argumentos oferecidos se sustentam em passagens das Sagradas Escrituras e, portanto, nesta perspectiva, fica patente a ligação da sociedade com Lúcifer. Mas, convenhamos, dentro da perspectiva religiosa cristã existe um sem número de elementos que, de alguma forma e em algum momento, estão relacionados com o diabo. Excluindo-se a perspectiva divina e adotando critérios que possam avaliar a Maçonaria como entidade juridicamente constituída e suas ações no sentido de acatar as leis, preservar a ordem, etc. verificaremos que jamais foi uma sociedade nociva à nação brasileira (ao contrário do Fórum de São Paulo onde só tem gente da pior espécie e ninguém o combate). A própria independência entre as lojas maçônicas e as diversidades entre umas e outras impedem que se articulem e construam um consenso que possa ameaçar as instituições da República. Certamente que abrigará em seu seio homens mal intencionado, mas isto não é um privilégio da Maçonaria, tendo-se em conta que estão presentes em todos os recantos da Terra. O que devemos temer e lutar é contra a devastadora atuação da elite socialista Fabiana globalista que vem destruindo, corroendo e solapando-nos diuturnamente.

Charge da época onde o papa Pio IX aplica a palmatória no imperador D.Pedro II

No Segundo Império tivemos a Questão Religiosa em 1870, conflito decorrente de um enfrentamento entre a Igreja Católica e a Maçonaria cujas causas remontam às divergências entre o catolicismo ultramontano (doutrina política católica que reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplina e fé), o liberalismo (sistema político-econômico baseado na defesa da liberdade individual nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal) e o regime do padroado (criado através de um tratado entre a Igreja Católica e os Reinos de Portugal e de Espanha. A Igreja delegava aos monarcas destes reinos ibéricos a administração e organização da Igreja Católica em seus domínios. O rei mandava construir igrejas, nomeava os padres e os bispos, sendo estes depois aprovados pelo papa), mas deste assunto trataremos em outra oportunidade.



Na Primeira Igreja Batista de Niterói (RJ) se instalou uma crise por conta da presença de maçons em sua liderança. Há o depoimento de um diácono que alega não haver contradição alguma em declarar-se maçom praticante há trinta anos e cristão há vinte e oito anos. A polêmica em torno da adesão de evangélicos à Maçonaria já provocou até racha numa das maiores denominações do país, a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), no início do século passado. Quando a Igreja proíbe que seus membros ingressem e/ou participem da Maçonaria (ou de qualquer outra coisa) está coerente com os seus princípios doutrinários e, portanto, caberá a seu membro fazer uma opção e, caso não faça, abriu espaço para que dela seja excluído. Por exemplo, os católicos são proibidos de envolverem-se com o comunismo, mas se a Igreja expulsar todos os seus membros ligados ao comunismo certamente contarão com um número apreciável de lugares vagos, a começar pelo seu comando. Portanto, a Maçonaria pode ser vista sob duas perspectivas. A divina e a humana. O que não deveria acontecer é que o julgamento da primeira não anule, minimize ou despreze os resultados positivos alcançados pela segunda. Os maçons estiveram presentes na Independência dos Estados Unidos, na Revolução Francesa, na Inconfidência Mineira, na Independência do Brasil, na Abolição da Escravatura, na Proclamação da República, etc. Discriminá-los, desprezá-los, desrespeitá-los ou ignorá-los vai muito além de uma grosseria. Uma atitude nestes sentidos revela a nossa ignorância e preconceito.

CELSO BOTELHO
23.10.2012


terça-feira, 9 de outubro de 2012

O FUNDADOR DO BRASIL






“No Estado presente do Brasil, em que os partidos se aborrecem e cabalam, na desordem das Finanças, o Ministério e o Conselho de Estado precisam muito de ter grande pulso, muito tino e circunspecção, conhecimentos vastos e fundados de governo político, e, sobretudo estima e reputação pública. Só esta combinação de elementos bem reunidos é que pode curar pouco a pouco as chagas do Estado – nada de bazófia e orgulho, porém modéstia, franqueza e boa-fé. E tem os nossos homens públicos estas qualidades? Tem sido esta a marcha do governo do Brasil?” (José Bonifácio, 13.06.1763/06.04.1838).


Dizia o grande brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948), hoje acusado de racismo e com seus livros vetados pelo MEC, que um país se faz com homens e livros e, podemos acrescentar, com exemplos. Preferencialmente os bons exemplos, mesmo que dos maus possamos sempre aprender alguma coisa. A memória histórica brasileira é sistematicamente omitida, distorcida, negligenciada, aviltada, manipulada e apagada conforme os interesses claramente percebidos neste ou naquele contexto histórico. Mas isto não é um privilégio dos brasileiros. Inúmeros países, em diversas épocas, também praticaram ações no sentido de moldar situações, fatos e personagens históricos em sintonia com os seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais ou religiosos. Portanto, cabe ao historiador desfazer mitos, lendas, estereótipos, preconceitos, discriminação, lançando-se à pesquisa minuciosa, seja em fontes primárias, secundárias ou não convencionais, concebendo uma metodologia capaz de dar conta de uma interpretação histórica desvencilhada o máximo possível da carga cultural que por certo detém, uma vez que uma neutralidade plena seja impossível alcançar. A menos que o historiador limite-se a transcrever os documentos oficiais sem qualquer análise, questionamentos e interpretação.


Os mitos acompanham as civilizações desde seus primórdios e, em inúmeros casos, guardam relações entre si, evidentes ou sutis, até mesmo quando se encontram distantes no tempo e no espaço. Na modernidade os mitos também se estabelecem e não é raro estarem acompanhados de fatos verídicos e mesmo com alguma base científica ou, por outro lado, desprovidos de qualquer valor que se lhe possa atribuir.  O mito, por assim dizer-se, foi uma maneira de explicar-se o mundo e ainda hoje o utilizamos frequentemente nas mais diversas ocasiões e circunstâncias. Exemplo: quando uma criança pergunta como ela nasceu naturalmente usaremos o mito da cegonha e jamais recorreremos a um tratado sobre reprodução humana. O mito fundador exerce uma influência muito abrangente no imaginário popular criando e reforçando crenças, expectativas, sentimento de pertencimento e unidade nacional.


Houve todo empenho em construir um herói nacional com a proclamação da República e o eleito foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O mito fundador é organizado de acordo com a ideologia dominante que se alimenta das representações por ele produzidas atualizando-o para adequá-lo aos sucessivos contextos históricos. As identidades nacionais precisam de vários elementos para ser forjadas e um herói é indispensável. Perceba que até a forma de retratá-lo remete a figura do alferes à imagem Jesus Cristo. O primeiro autor a estabelecer esta associação foi Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891) em sua obra História da Conjuração Mineira de 1873. Em 1867, Joaquim Saldanha Marinho, presidente da província de Minas Gerais, mandou erguer um monumento em sua homenagem em Vila Rica. Mas foi a partir dos conflitos entre monarquistas e republicanos, respectivamente numa luta simbólica entre a figura de D. Pedro I e Tiradentes, que este último ganhou a conotação política de salvador da pátria brasileira. Tiradentes foi inventado pela República que precisava de um herói, posto que não possuísse nenhum que pudesse sintetizá-la e sustentá-la num momento que estava criando um novo país e com novos valores. Um mártir nacional que contagiasse todos despertando um sentimento nacionalista, um símbolo da resistência e amor à pátria. No ano de 1965, o presidente Castelo Branco sancionou a lei (Lei 4.897 de 09.12,1965) que tornou Tiradentes “o patrono cívico da nação brasileira”, colocando o herói como o pai da nação.


O espaço concedido a Tiradentes até os dias atuais, contrastado com outros personagens de igual ou até mesmo maior importância para a fundação da nação brasileira, mostra uma diferença abissal. Atualmente, felizmente, encontramos professores que, em sala de aula, questionam a imagem de Tiradentes enquanto um mito, como a historiografia nacionalista o criou. Problematizar os fatos nos quais esteve envolvido Tiradentes não de maneira divinizada e sim como um sujeito político, com intenções, atuante em seu tempo e vinculado a outros sujeitos históricos também presentes naquele momento (escravos, mulheres, indígenas, etc.). Ressalte-se que nossa intenção não é a de contestar a validade do personagem histórico ou atirar-se em campanha para suprimir-lhe ou minimizar-lhe a importância. Nosso objetivo é de apresentar um personagem fundamental para a formação da nação e que tem sido negligenciado pela história ao destinar-lhe um papel quase que secundário e esvaziado da importância que detém. Falamos de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência. Apenas conceder-lhe este título não significa que fizemos justiça. Tiradentes é mais conhecido pelo feriado que se faz em sua homenagem do que pelo que realmente representa. José Bonifácio nem isso. Tanto Tiradentes quanto José Bonifácio eram tidos e havidos como vilões no seu tempo, no julgamento da Corte portuguesa. A História mostra, com inúmeros exemplos, uma alternância para identificar personagens, ora santificados ou demonizados, de acordo com os interesses do momento.


O historiador inglês Kenneth Maxwell, autor de "A Devassa da Devassa" (Rio de Janeiro, Editora Terra e Paz, 2ª ed. 1978.) diz que "a conspiração dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa", e que objetivava, não a independência do Brasil, mas a de Minas Gerais. O historiador carioca Marcos Antônio Correa defende que Tiradentes não morreu enforcado em 21 de abril de 1792. Correa começou a suspeitar disso quando viu uma lista de presença da Assembleia Nacional francesa de 1793, onde constava a assinatura de Joaquim José da Silva Xavier, cujo estudo grafotécnico permitiu concluir que se tratava da assinatura de Tiradentes. Segundo Correa, um ladrão condenado morreu no lugar de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida pela maçonaria. Testemunhas da morte de Tiradentes se diziam surpresas, porque o executado aparentava ter menos de 45 anos. Sustenta Correa que Tiradentes teria sido salvo pelo poeta Antonio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) maçom, amigo dos inconfidentes e um dos juízes da Devassa e embarcado incógnito para Lisboa em agosto de 1792. O historiador menciona uma carta do desembargador Simão Pires Sardinha (1751-1808) onde relata haver encontrado uma pessoa semelhante a Tiradentes que, ao vê-lo, saiu correndo. As evidências são muito frágeis, por enquanto, para afirmarmos se isto realmente aconteceu. Serão necessárias pesquisas mais aprofundadas recorrendo a fontes inéditas e também praticamente desconhecidas. Contudo, o irmão de José Bonifácio, Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1755-1844), disse que não fora Tiradentes que morrera enforcado e sim outra pessoa e que, após o esquartejamento, sua cabeça desaparecera para que não se pudesse identificar o corpo. Somente com essas referências pode-se perceber que a História não é algo pronto e acabado. É constante o aparecimento de evidências que podem endossá-la ou refutá-la. A história oficial é a construção de símbolos que possam identificar uma sociedade e ser reconhecida no seu tempo. O mito do herói nacional tem a capacidade de aglutinar a população, despertar um sentimento de pertencimento atingindo a memória coletiva e reforçando os ideais positivistas daquela época legitimando a nova forma de governo que se instalava. A construção de um mito é algo complexo e tem objetivos definidos.


José Bonifácio Andrada e Silva (1763-1838) foi alçado a categoria de Patriarca da Independência logo após a emancipação política do Brasil em 1822. Seus contemporâneos Gonçalves Ledo e Evaristo da Veiga reclamaram também o título. Viveu por quase três décadas na Europa só retornando ao Brasil com 56 anos de idade tornando-se conselheiro do príncipe D. Pedro I. Nomeado ministro do Reino e dos Estrangeiros, em 1822, passou a ser hostilizado por liberais e conservadores, e acabou preso e exilado pelo imperador. No entanto, alguns anos depois, José Bonifácio regressou à pátria para assumir o cargo de tutor do futuro imperador D.Pedro II.


Documentos permitem avaliar melhor o desempenho de José Bonifácio. Suas propostas de medidas governamentais, estudos técnicos sobre economia, política e sociedade e sua participação nos debates políticos. São documentos que revelam o homem público, uma imagem complexa de um intelectual típico da Ilustração. Homem culto e viajado, um cientista que percorreu a Europa numa época tumultuada pela Revolução Francesa, o que deixou nele profundo receio dos levantes populares e das revoluções. José Bonifácio confessava ser amante da liberdade controlada, da monarquia constitucional, inimigo dos despotismos, contrário à escravidão do negro (nunca teve escravos, abominava a escravidão e orientou os deputados brasileiros na Assembleia Constituinte Portuguesa, ocorrida pouco antes da independência do Brasil, a defender o fim do regime escravo. José Bonifácio escreveu que o Brasil seria um país digno e feliz quando negros e mulatos fossem cidadãos livres e empreendedores), favorável à concessão dos votos às mulheres e crítico do latifúndio improdutivo. Desprezava homens servis e bajuladores e aqueles que disputavam títulos de nobreza. Atacado pelos liberais por assumir a perspectiva conservadora, e pelos conservadores por seus projetos de transformação da ordem social, tornou-se presa fácil de seus inimigos. A figura do Patriarca, politicamente conservadora, procurava conciliar a liberdade com a ordem, pouco amigo dos “excessos democráticos e da liberdade sem limites”, agradava assim aos políticos e ideólogos que durante o Império (1822-1889) e Primeira República (1889-1930) pregavam um Executivo forte. O historiador Otávio Tarquínio de Souza (1889-1959) escreveu a História dos Fundadores do Império do Brasil, obra que teve um de seus volumes dedicado à biografia de José Bonifácio. A adesão de D. Pedro I ao movimento emancipador deve-se a José Bonifácio, tendo como grande colaboradora a princesa Leopoldina de Habsburgo. José Bonifácio convenceu D. Pedro I a comprometer-se com a independência do Brasil tornando-se imperador e evitando uma guerra civil. Criou as principais instituições que mantiveram a integridade do território brasileiro após a independência de Portugal.


Nosso sistema de valores acha-se, desde muito, desgraçadamente, comprometido, distorcido, manipulado, invertido e corrompido. Apresentam-nos vilões como heróis (e algumas vezes com a ridícula pretensão de semideuses) e os transformam em mitos que são convenientes, mas nem um pouco convincentes. Porém, devido a repetição exacerbada, a propaganda maciça e ao assistencialismo estatal ineficiente e indecente acabam por serem assimilados e até cultuados como verdadeiros salvadores da pátria. No Brasil se constrói mitos a partir da mentira, do engodo, do embuste. A sociedade é conduzida à idolatrar entes diabólicos no conteúdo e aparentemente angelicais na forma. Urge que resgatemos personagens históricos como José Bonifácio e os apresentemos nas escolas como os verdadeiros patriotas e repudiarmos toda e qualquer tentativa de aparelhamento ideológico daqueles que detém o governo e esmeram-se das maneiras mais sórdidas e perversas para tomar o Estado brasileiro. É preciso que estejamos atentos e instrumentalizados para desmistificar e desmascarar as atitudes, posturas e comportamentos objetivamente dirigidos para a limitação do desenvolvimento intelectual do cidadão, em especial as crianças, e sua doutrinação segundo seus pressupostos. Cabe a toda sociedade de um modo geral e aos educadores em particular restabelecer nosso sistema de valores, aprimorá-lo e preservá-lo. Portanto, retirar José Bonifácio do ostracismo, vivificá-lo e colocá-lo em seu devido lugar de fundador do Brasil não o mistificando e sim o apresentando como ser humano com suas angústias, incertezas, convicções e contradições é uma obrigação que professores e historiadores devem ter.

"A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza." (José Bonifácio)


CELSO BOTELHO
08.10.2012