sábado, 9 de março de 2013

RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE A VIOLÊNCIA, A GUERRA, O TERRITÓRIO E O PODER NA CULTURA MANDÊ




Existe e sempre existirá uma relação intrínseca entre a violência, a guerra, o território e o poder, pois, em nosso entendimento, estes elementos sempre estiveram presentes na História da humanidade, o que difere são os contextos que estamos a examinando.  Na cultura Mandê não foi diferente e surge de um ato de violência organizada, ou seja, a prática da violência como instrumento estratégico para alcançar-se um fim e, no caso, um fim positivo, pois se trata de preservar a liberdade e por fim a captura e venda de pessoas para o tráfico transaariano. Portanto, rejeitava-se a prática da violência cega, apenas destrutiva, movida tão somente pelo ódio e pelo rancor. Porém, isso não quer dizer que não fosse utilizada. Sundiata Keita (ou Mari Dajta, “O Leão de Mali”, 1190-1255) idealizou, propôs e organizou uma aliança entre as aldeias e, notem-se, compostas de varias etnias, lançando-se à guerra contra Soumaoro Kanté, rei do Sosso, vencida na Batalha de Kirina, margem oriental do Níger (1235). Vitorioso, foi aclamado soberano por haver liderado uma guerra defensiva e por isso justa. De acordo com o nosso entendimento este conceito visa justificar o emprego da violência, da guerra, como sendo elemento fundador do território e instrumento de prevenção de conflitos que nele se sucedem e, por último e não menos importante, uma mecânica de sua difusão e expansão no que resulta sua legitimação ideológica. Como soberano caberia a Sundiata garantir a estabilidade, a paz e prosseguir combatendo o tráfico de escravos e, para isso, há que estabelecer-se o poder político no território que apresenta características como a hereditariedade, moderação, respeito às tradições e aplicação da justiça e, com efeito, tais pressupostos proporcionam a paz e a segurança interrompendo o tráfico de escravos e, concomitantemente, restabelecendo as praticas comerciais e, essencialmente, desenvolvendo o cultivo da terra.

Cidade de Gao, Mali

Entretanto, tal cenário foi modificado com o crescente tráfico de escravos promovido pelos europeus gerando instabilidade e insegurança para os mandingas a exemplo do que acontecera anteriormente com o tráfico transaariano e retornando o banditismo com a finalidade de abastecer o mercado europeu. Esta ação acontecia ora de forma individual, ora em grupos isolados que após atingirem seu objetivo desfaziam-se ou organizados em bandos (com dezenas de indivíduos) que deviam obediência a um chefe. Surge então a figura de Biton (Maamari Kalibali) que promove ações violentas dando início ao Reino de Segu (1720) imprimindo nova configuração ao Estado que passa a ser guerreiro. Então, observamos, as motivações passaram a ser outras e, entre elas, a violência cega como meio de gerir ganhos estritamente políticos e econômicos. Não se tratava, portanto, de uma guerra defensiva e justa, ao contrário. A conquista do poder, sua manutenção e exercício não encontram paralelos entre Sundiata e Biton. Possuem formas e conteúdos diferentes. Mas detectamos um problema comum entre os dois regimes: o momento da sucessão. No primeiro assegura-se a hereditariedade e isto, fatalmente, conduz ao poder soberanos fracos, incapazes, ineptos. No segundo prevalece a conquista do poder e alcançá-lo, mantê-lo e exercê-lo acarretará em disputas dinásticas acirradas onde os pretendentes deverão empenhar-se em provar reunir as qualificações necessárias e ainda, dentro deste tumultuado processo, rompe-se a tradição de ancianidade o que robustecera o conflito sucessório. Biton contradiz-se deliberadamente ao estimular e praticar o tráfico de escravos e declará-lo ilegal. Exige das aldeias compensações para que mantenha seu bando delas afastado e, através da constante ameaça, tem a sua autoridade reconhecida e sua submissão, no entanto, observamos que isto não impede suas ações porque o Estado guerreiro instituído por Biton revela-se um produtor de prisioneiros que são transformados em escravos, atividade que conta com o aperfeiçoamento da guerra e de uma organização territorial dotada de aparatos capazes de lhe dar sustentação no que resulta, inexoravelmente, na desagregação das instituições mandingas mediante o uso contínuo da força e da violência.



A estrutura da civilização Mandê, guardando-se as devidas proporções espaciais e temporais, encontrava-se bem elaborada e definida com esferas distintas (familiar, política, escravista, de castas, de relações matrimoniais, de sistemas de classes etárias). O convívio e as circunstâncias é que irão determinar suas atitudes umas com as outras concorrendo para enfraquecê-las ou reforçá-las, porém, sempre visando obter algum benefício para si. De qualquer maneira comungam dos mesmos interesses sobre o território, sua organização e utilização, mas isso não garante a estabilidade uma vez que os conflitos vão se sucedendo a partir do intenso tráfico de escravos praticado pelos europeus que vemos como fator preponderante para a derrocada do Império Mali. A violência organizada adquire consistência e, neste ponto, toda e qualquer tentativa para o estabelecimento de uma nova ordem que possa debelá-la se mostra incapaz de frustrar sua queda, mesmo porque a guerra e a conquista por território alimentam o tráfico de escravos e afirma-se como padrão comportamental. Porém isso não significa a ausência de resistência da população, mas sim uma nítida prevalência do comércio escravista.

O Império Mali

No território Mandê o caçador (donso) desempenha papel crucial em sua formação. Impõem-se atributos essenciais para o exercício desta função tais como ser forte, corajoso, habilidoso com as armas e direcionados a fins que redundariam em benefícios para a coletividade, pois, de maneira contrária, a utilização da força geraria a violência bruta, destrutiva, que macularia o território selvagem (wula), ou seja, aquele que ainda não sofrera com a intervenção humana. Podemos dizer que este lugar era de suma importância como fonte de recursos indispensáveis à sobrevivência das aldeias e, portanto, fator decisivo de sua estabilidade, pois dali retirava o sustento de sua população, os meios para acelerar e manter o seu crescimento e, sobretudo, desenvolver as atividades agrárias. Para se alcançar estes objetivos a utilização do território deveria obedecer a critérios consoantes com a sua localização e poderiam destinar-se a realização de rituais, a caça, a pesca, a colheita de frutos, ervas medicinais, pasto ou fornecer lenha. Era incumbência do caçador desbravar este território e nele entranhar-se para dar combate às forças do mal revestidos de seu poder místico, sobrenatural e vencê-las purificando-o e permitindo que os objetivos fossem alcançados. Entende-se então que o caçador domina a violência através do uso disciplinado da força justificando-a. Para reforçarmos este conceito recorremos ao autor textualmente: “a apropriação intelectual do espaço produz as informações práticas necessárias à caça.” O território, após a ação do caçador, está apto à realização de cultos e atividades produtivas o que resulta em desenvolvimento social. Neste contexto, entretanto, há uma outra direção que não a hereditariedade, ou seja, o aprendizado e, em ambas, os mesmos atributos se fazem necessários. Para o aprendizado não há um limite de tempo pré-fixado, ele será ministrado enquanto o mestre avaliar que o aprendiz não se encontra suficientemente preparado para o exercício da função. Dentro desta estrutura de aprendizado está identificado um chefe que deve possuir a capacidade de evitar conflitos, mostrar-se generoso, imparcial e – acima de tudo – demonstrar poder místico que garanta a abundância da caça e afaste os perigos a ela inerentes. Caso tais atributos deixem de existir uma assembléia irá destituí-lo, mas permanecendo na função prosseguirá distribuindo conselhos, concedendo permissão para irem à caça e através de suas orações e poderes sobrenaturais assegurará a prosperidade. Sua recompensa por tão valiosos préstimos será ficar com uma parte da caça e desfrutar do respeito de todos. As relações entre violência, guerra, território e poder na estrutura Mandê convergem ou divergem dependendo das circunstâncias, porém, observamos que se apresentam ordenadas por interesses e isto favoreceu sua manutenção durante certo período  e, ao mesmo tempo,  concorreu para o seu ápice e declínio.


Vale lembrarmos que o tráfico de escravos de origem européia encontrou um ambiente favorável e uma situação bem estabelecida que proporcionasse sua intensificação. No século XVII e no decorrer do XVIII e XIX a maciça demanda por mão de obra escrava para abastecer o Novo Mundo promove a desintegração do espaço político Mandê em decorrência do uso da violência bruta, das guerras, do banditismo. Ressaltamos que este processo teve início com o tráfico transaariano e depois grandemente expandido pelos europeus.


CELSO BOTELHO
09.03.2013

bibliografia
Turco, Ângelo – SEMÂNTICAS DA VIOLÊNCIA, Guerra, Território e Poder na África Mandinga (VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, º 35, p. 125-149, jan./jun. 2006)

www.mw.pro.br/antrop_fabuloso_reino_dos_mansas_do_mali.pdf