Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca
REVOLTA DA CHIBATA, LEI DA ANISTIA, GUERRA DO CONTESTADO, TREM-BALA, REVOLTA DE JUAZEIRO, TRANSAMAZÔNICA, VILAS OPERÁRIAS, BNH, MINHA CASA, MINHA VIDA, NOVA ORDEM MUNDIAL. TUDO A VER.
Espaço-Tempo curvo
Contrariando o pensamento de alguns o estudo da História nos permite compreender o presente e planejar o futuro. Entretanto, devemos nos cercar de muito cuidado para não cairmos na armadilha do anacronismo que se constitui num equívoco inaceitável para os historiadores. Cada período histórico reúne conceitos e ideias que lhes são próprias e inaplicáveis em outras temporalidades. Podemos aplicar os valores do presente como uma referência para a compreensão do passado comparando as diferenças conceituais e estabelecendo um diálogo entre os valores vigentes num e noutro período histórico. O caráter analógico de um estudo histórico tem a capacidade de identificar origens e estabelecer permanências, semelhanças e rupturas sociais, políticas, econômicas, culturais, religiosas, etc. Interpretar os fatos exige, além das ferramentas metodológicas adequadas, a busca e um exame minucioso das fontes interrogando-as e questionando-as. As ações humanas são produtos de seu tempo e espaço, mas suas interpretações não se acham confinadas nestes limites, posto que o historiador também seja um produto do seu tempo e espaço. Ao tratarmos de períodos históricos diferentes não significa que não tenhamos qualquer relação com ele, ao contrário.
João Cândido faleceu em 1969 aos 89 anos
Entre tantos episódios que marcaram a passagem do marechal Hermes Rodrigues da Fonseca (1855-1923) pela presidência da República a Revolta da Chibata é um dos mais marcantes. Logo nos primeiros dias de seu governo marinheiros, em sua maioria negros e mulatos alforriados ou libertos em 1888, eram punidos com chibatadas por qualquer atitude julgada pela oficialidade branca como ato de indisciplina, rebeldia ou negligência. Os marinheiros recebiam tratamento que não diferia daqueles dispensados no período escravagista. O estopim da revolta se deu por conta do marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes haver levado bebida alcoólica para uma embarcação oficial e agredido um cabo. Pelas leis da Marinha o máximo de chibatas era de 25, porém, este marinheiro recebeu 250 diante de todos a bordo do encouraçado Minas Gerais. Os marinheiros rebelados mataram a tiros e coronhadas o almirante João Batista das Neves e outros oficiais, além de outros marinheiros que não aderiram à revolta. Em 23 de novembro de 1910 o marinheiro João Cândido Felisberto divulgou uma carta exigindo o fim dos castigos corporais, a melhora na alimentação e a anistia para os revoltosos. Caso contrário, os marinheiros que somavam mais dois mil reunidos nas maiores embarcações da Marinha Brasileira ameaçavam bombardear a cidade do Rio de Janeiro, a partir da baía de Guanabara. No dia 25 de novembro de 1910 o presidente Hermes da Fonseca concedia anistia aos insubordinados através do Decreto 2.280/1910 com a condição que depusessem as armas e dois dias depois com o decreto nº 8.400, pressionado pelo ministro da Guerra, a imprensa e alguns setores da sociedade, revogou a anistia para os amotinados que foram expulsos da Marinha e outros presos, mas poucos sobreviveram. Este episódio foi tão marcante para os militares da Marinha que em 1975 os compositores Aldir Blanc e João Bosco tiveram sérios problemas com a censura do regime militar (1964-1985) com a música “O Mestre Sala dos Mares” que homenageava o marinheiro João Cândido sendo forçados a fazer alterações na letra. A Marinha não toleraria “loas (elogios) a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais”. João Cândido faleceu aos 89 anos em 1969 como vendedor de peixe na Praça XV no Rio de Janeiro. Em 13 de maio de 2008 o Congresso Nacional, através do PL 7198/02 de autoria da ex-senadora Marina Silva (PT-AC), restabeleceu os direitos de todos os marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata. O decreto devolve aos marinheiros suas patentes permitindo que recebam na Justiça os valores a que teriam direito caso houvessem permanecido na ativa. Podemos ver claramente que não é uma prática incomum nos governos republicanos não honrar compromissos assumidos. E o fazem sem qualquer constrangimento. O uso de castigo físico na Marinha já havia sido abolido por ocasião da Proclamação da República, mas no ano seguinte fora reintroduzido. A palavra empenhada, escrita e com a forma de decreto, não foi honrada, mas, afinal, o que é que político brasileiro pode saber sobre probidade, lisura, honra, ética, moral e lealdade? Vejam alguns exemplos.
Marechal Deodoro da Fonseca destrona D. Pedro II
Manifestação a favor da Anistia
Os revoltosos da Guerra do Contestado
Como em tantas outras situações semelhantes ocorridas ao longo de nossa História a Guerra do Contestado envolve interesses fundiários e políticos, mau planejamento, exploração humana, corrupção, favorecimentos, omissão e descaso por parte do poder público. Os “coronéis” da região (chefes políticos e grandes proprietários rurais) associados ao governo ao iniciarem as obras da estrada de ferro entre os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul por uma empresa norte-americana (Brazil Railway Company) representada pelo empreender Percival Farquhar trouxeram para a região milhares de pessoas oriundas de outras partes do país. A Brazil Railway teve uma subvenção garantida pela União de trinta contos de réis por quilometro construído e mais o pagamento de juros de 6% ao ano sobre o total investido e mais quinze quilômetros de cada lado da ferrovia (como se dizia antigamente um autêntico negócio da China). Percival tratou de “esticar” ao máximo a ferrovia com curvas desnecessárias economizando muito não construindo aterros, pontes, túneis e viadutos. Porém, estas concessões do Estado brasileiro não surpreendem o mais incauto de seus cidadãos. Tomemos como exemplo o projeto do trem-bala ligando Rio-São Paulo. Ao contrário da estrada de ferro de Percival, nesta ferrovia será imprescindível a construção de aterros, pontes, túneis e viadutos. O traçado para o trem-bala deve ser o mais reto possível. Um dos projetos já estudados prevê que 26% do trajeto serão feitos em viadutos ou pontes e 33% em túneis. Quantos aos aterros, um trecho de 61 km, entre Lorena e Jacareí, em São Paulo, caso opte-se por aterrá-lo custará em torno de R$ 265 milhões, mas se a opção for construir um viaduto o valor subiria para R$ 4,2 bilhões. O professor da Universidade de Transportes da China Zhao Jian ao ser perguntado se fazia sentido construir um trem de alta velocidade no Brasil foi categórico: a concentração e densidade populacional são muito baixas e o custo de construção de um trem de 350 km/h é o dobro de um de 200 km/h. Portanto, além de perfeitamente dispensável, de construção dispendiosa e baixíssima rentabilidade irá favorecer uns poucos com o dinheiro do contribuinte como, aliás, é a praxe.
O mato floresce no que resta da Estrada de Ferro São Paulo - Rio Grande do Sul
Pessoas relacionadas com a empresa construtora da linha férrea adquiriram grande extensão de terras na região expulsando inúmeras famílias de suas terras com a finalidade de estabelecer uma empresa madeireira voltada para a exportação (Southern Brazil Lumber & Colonization Company Inc., que dispunha de 200 homens, leia-se jagunços, dispostos a pressionar quem quer que fosse). Ao final da obra os trabalhadores trazidos de várias partes do Brasil encontraram-se desempregados e desamparados tanto pela empresa quanto pelo governo. Ingredientes mais que suficientes para a eclosão de uma revolta popular. Uma liderança religiosa apregoava um novo mundo com obediência às leis de Deus, com prosperidade, justiça e terras para se cultivar. Melhor mensagem para os desvalidos não poderia ser tão oportuna. José Maria, o líder, tornou-se motivo de preocupação para os “coronéis” e para o governo que o elegeram como inimigo da República e, portanto, bode expiatório para camuflar a própria incompetência, descaso e omissão do Estado com seus cidadãos. Isto, contudo, não se revela como novidade. O capitão Matos Costa, morto na Guerra, compreendeu o que acontecia e afirmou: “A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança”.
Na estação das chuvas o trânsito é impraticável na Transamazônica
É useiro e viseiro a eleição de bodes expiatórios para encobrir as mazelas governamentais. Por ocasião da abertura da Transamazônica (BR 230), rasgou-se a floresta com prejuízos ao meio-ambiente contabilizados até os dias atuais, recrutaram-se trabalhadores de várias partes do país e também até hoje se espera sua conclusão e pavimentação (na estação das chuvas o trânsito é impraticável) apesar de sua inauguração ter ocorrido há exatos quarenta anos (30.08.1972). Foram, aproximadamente, dois milhões de brasileiros e brasileiras que se sentiram chamados pelo canto da sereia do governo Médici (1969-1974) de “terras sem homens para homens sem terra” e “integrar para não entregar”. A ditadura militar era um primor de slogans ufanistas. “Brasil. Ame-o ou deixe-o”, “Ninguém segura mais este país”, “Este é um país que vai prá frente” e outras baboseiras. O sonho do ditador megalômano custou cerca de US$ 1,5 bilhão sem que fosse concluída. O planejamento e implementação do projeto foi catastrófica. A partir de 1975 o governo sumiu da região deixando a população desamparada, talvez estivesse mais preocupado com a Guerrilha do Araguaia, cuja existência negava e, ao mesmo tempo, mobilizava o Exército e a Aeronáutica para combatê-la. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prometeu a pavimentação da Transamazônica e outras rodovias dentro de um plano ambicioso, o "Avança Brasil", que previa a aplicação de cerca de US$ 43 bilhões na região. Uma parte dos recursos ficou na promessa e a outra parte tomou rumo desconhecido. O ex-presidente Lula também prometeu pavimentar 850 quilômetros até 2011, porém às portas de 2013 e menos de 200 quilômetros receberam asfalto. Hoje a Transamazônica possui apenas um quarto do previsto, isto é, 2.500 km. No dia 19 de novembro do corrente ano cerca de mil trabalhadores fecharam a rodovia Transamazônica e a BR 163 na altura do Km 140 (Ponte Grande), município de Rurópolis, oeste do Pará. O objetivo é negociar com o governo as demandas históricas da região, sempre abandonada pelo poder público. Os agricultores exigem o asfaltamento da Transamazônica e BR 163 (Rurópolis ao Km 30), acesso à energia elétrica, regularização fundiária e revisão das unidades de conservação que sobrepõem assentamentos já existentes, além de políticas públicas nas áreas de educação, saúde e segurança. Portanto, o barril de pólvora está posto só aguardando que se acenda o pavio. As lideranças messiânicas do início da República foram substituídas pelos movimentos sociais e ONGs com a diferença que aquelas eram compreendidas como movimentos anárquicos que punham em risco a República e deveriam ser duramente reprimidas. Enquanto os movimentos sociais e ONGs de hoje são entendidos como organismos legítimos de reivindicações e representantes de segmentos excluídos, mesmo que para isso violem as leis, promovam a desordem, ocupem e depredem propriedades privadas e tudo isso com o beneplácito de sucessivos governos que, cada vez mais, interessa-se pela inversão dos valores, principal elemento para a desorientação da sociedade deformando seus critérios de julgamento e, consequentemente, favorecendo a instalação do caos coletivo.
Padre Cícero
Vila Operária de Marechal Hermes no Rio de Janeiro atualmente
Apesar de todas as situações expostas o governo do marechal Hermes possui alguns indicadores positivos. A malha ferroviária nacional ganhou 4.500 km. A cultura do trigo revigorou-se com a criação da Estação Experimental de Trigo em Bagé. Em 1913 foi criada a Escola Brasileira de Aviação para oficiais do Exército, da Marinha e civis. Mas destacaremos aqui a construção das vilas operárias. O presidente Hermes da Fonseca foi o pioneiro na construção de conjuntos habitacionais no Brasil. A Vila Operária de Marechal Hermes previam serviços de infraestrutura, como a estação de trem inaugurada em 1913, para que fossem autossuficientes. As obras foram paralisadas após o senador Pinheiro Machado remover do cargo o diretor da comissão de construção da vila. Nos anos que se seguiram nenhum governo por elas interessou-se sendo esquecidas até o governo Vargas que retomou as obras em 1931 quando a posse da vila foi ter às mãos do Instituto de Previdência dos Funcionários Públicos da União (IPFPU), que encontrou um cenário desolador: 128 casas desocupadas e muitas inacabadas. Nessa fase foram construídas 300 casas, o Cine Lux, hoje em ruínas, e o Hospital Carlos Chagas que, de certa forma, também se encontra em ruínas como, aliás, todo sistema de saúde. Depois disso somente nos anos 1940 e 1950 o bairro recebe novos investimentos do Estado construindo quase seiscentas moradias, um ginásio, uma maternidade e o Teatro Armando Gonzaga. Nesta etapa foram construídos três conjuntos habitacionais (o Comercial, de 1948; o Três de Outubro, em 1949 e o do Ipase, de 1954). A partir do governo Vargas foi que a habitação passou a ser vista como uma questão social. Criou-se a Lei do Inquilinato e iniciou-se a construção de conjuntos habitacionais financiados através das Caixas e Institutos de Aposentadoria e Pensões e da Fundação da Casa Popular, primeiro órgão federal específico voltado para a produção da moradia popular. Mesmo frustrada a política habitacional os conjuntos construídos eram de excelente qualidade, com propostas urbanistas de vanguarda e valorização do espaço público. Como já foi dito anteriormente o governo Vargas legou ao país avanços importantes, apesar de sua truculência, aleivosia e velhacarias.
Conjunto habitacional construído pelo BNH
Conjunto habitacional construído pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Qualquer semelhança não é pura coincidência.
Em 1964 foi criado o BNH (Banco Nacional da Habitação (Lei 4.380 de 27.08.1964) estabelecendo uma fonte estável de recursos para o desenvolvimento de políticas habitacionais. Porém, não foi lá muito útil. Em 1975 o banco destinava apenas 3% de seus financiamentos a famílias com rendimento abaixo de cinco salários mínimos. A construção de conjuntos habitacionais privilegiava ganhos financeiros e, portanto, os imóveis apresentavam baixa qualidade e o financiamento para os trabalhadores de baixo poder aquisitivo se inviabilizou estimulando o aparecimento e aumento das habitações irregulares. O BNH primou por uma atuação econômica deplorável, abandono da questão social, afastamento do problema habitacional com o direcionamento para outros setores, a repetição de modelos arquitetônicos e a ocupação do espaço urbano sem bons critérios. A questão social deu lugar aos interesses econômicos comprometendo a política habitacional do BNH. Com a extinção do BNH (Decreto-Lei 2.291/1986) suas atribuições dispersaram-se entre diversos órgãos (Caixa Econômica Federal, ministérios e secretarias), os municípios passaram a planejar e executar os projetos de habitação. Ao priorizar o interesse econômico em detrimento da política habitacional o BNH pouco fez para a população de baixo poder aquisitivo onde se concentra o maior número do déficit habitacional. Em 2009 o governo federal implantou o programa Minha Casa, Minha Vida (Lei 11.977 de 07 de julho de 2009) retomando a produção em massa de moradias populares (um milhão de moradias) sem considerar os aspectos urbanísticos, arquitetônicos, regionais, etc. Mais uma vez privilegia-se o ganho financeiro e político-eleitoreiro em detrimento da solução do déficit habitacional. Na faixa de renda familiar de 0 a três salários mínimos o governo subsidia integralmente. No entanto, a maioria dos empreendimentos aprovados estão localizados em cidades e regiões onde o déficit habitacional é menor. Em contrapartida as construtoras concentram suas atenções para as periferias das grandes cidades para a faixa de três a seis salários mínimos. Isso concorre para que o programa deixe de atender o déficit habitacional para as famílias de menor poder aquisitivo. As grandes cidades, onde a demanda por moradias é maior, atualmente não possuem muitas áreas disponíveis elevando o custo das construções para as famílias de baixa renda. Não restando, pois, alternativa senão as distantes periferias ou municípios vizinhos às grandes metrópoles que, por sua vez não dispõe de infraestrutura (água, esgoto, escolas, postos de saúde, segurança, transportes, etc.) e sua construção encarecerá a área. Depois deste breve resumo pode-se concluir que, decorridos um século da iniciativa do governo Hermes da Fonseca, os problemas habitacionais no Brasil persistiram e avolumaram-se. Hoje possuímos um déficit habitacional quantitativo e qualitativo de, aproximadamente, sete milhões de moradias que abarca, principalmente, as famílias de baixa renda e em áreas urbanas (82,6%). Somente no Estado do Rio de Janeiro as famílias com renda bruta de até três salários mínimos correspondem a 89,9% do déficit habitacional. O programa Minha Casa, Minha Vida pode até ser bom nas intenções, mas de boas intenções o inferno está cheio sem, contudo, encontrar-se com a lotação esgotada. E, como dizia Henry Kissinger (1923-), secretário de Estado dos Estados Unidos, “a História não falará de nossas intenções e sim de nossas ações”. A produção de moradias para as famílias de baixa renda é insuficiente ao longo da História e os motivos são os mais diversos como o considerável crescimento demográfico, migração para centros urbanos incapazes de absorver tamanho contingente, achatamentos salariais, instabilidade econômica, política, etc. Os valores dos subsídios concedidos, os recursos próprios que as famílias têm que desembolsar para dar como entrada nos financiamentos, os altos custos de produção, a baixa renda bruta familiar e o valor do aluguel pago pelos que não têm casa própria são fatores que dificultam a produção e a aquisição de moradias por parte das famílias que têm renda bruta até três salários mínimos, uma vez que os valores máximos calculados para as prestações quase sempre são insuficientes para se adquirir ou construir o imóvel pretendido no valor e prazos máximos estabelecidos pelo programa. Portanto, “o sonho da casa própria” está tão distante quanto estava no inicio do século com a iniciativa pioneira do presidente Hermes da Fonseca.
CELSO BOTELHO
08.12.2012