domingo, 26 de fevereiro de 2012

TERRA Á VISTA... A PRAZO, INVADIDA E SAQUEADA

      


                                                                       O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (Jean-Jaques Rousseau, 1712-1778)

O filósofo estabeleceu a causa da miséria humana: a propriedade privada. A propriedade coletiva, pelo menos das maneiras que conhecemos sempre se mostrou ineficiente. A propriedade privada, nas formas que também conhecemos é excludente. E esta discussão remonta à Antiguidade greco-romana. Platão (428/7 a.C.-348/7 a.C.) defendia a propriedade coletiva da terra, enquanto que Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), seu discípulo, recomendava à propriedade privada. Mas então qual seria o modelo adequado que viesse a atender todos? Ainda não foi concebido. A questão da terra em nosso país exige muito mais que esforço intelectual, exige vontade política, supressão de privilégios, legislação adequada e fiscalizada e o desmonte de estruturas seculares, entre tantas outras coisas. O conhecimento histórico contribui com a pesquisa e análise crítica da questão da terra e propõe que reflitamos sobre sua trajetória a partir da terceira década do século XVI identificando diferenças e semelhanças, rupturas e permanências ao longo do tempo. Conhecer e refletir criticamente sobre os acontecimentos históricos permitirá uma compreensão maior e melhor dos fatos presentes e, certamente, a indicação de uma direção que proporcione as soluções desejadas.

CAPITANIAS HEREDITÁRIAS



Entre outros motivos que levaram Portugal a colonizar o Brasil podemos destacar a atuação de corsários, especialmente os franceses, que estabeleceram até uma companhia para dar suporte as suas ações no litoral brasileiro. Colonizar significava tomar posse de fato da imensa extensão de terras que por direito cabia ao reino português, segundo o Tratado de Tordesilhas (1494). Antes mesmo de D. João III (1502-1557) a instituir a partir de 1534 as capitanias hereditárias, o rei D. Manuel I (1469-1521), em 1504, doara a Ilha de São João ou Ilha da Quaresma a Fernão de Noronha (datas de nascimento e morte não são precisas) situada a cinquenta léguas da costa sendo confirmada a doação por D. João III em 1522 tornando, portanto, a primeira capitania hereditária no Brasil. Este sistema já era utilizado em outras possessões portuguesas como as ilhas de Açores e Madeira com sucesso e diante da necessidade de colonizar e disponho de parcos recursos o soberano lusitano decidiu transpor para o continente esta modalidade para garantir a posse efetiva da terra. Não atentou, porém, para o fato da imensa extensão territorial, o clima, a distância, etc. Podemos dizer que nosso país foi fundado a partir de uma parceria público-privada que hoje é muito difundida como um excelente arranjo para dar conta de obras e projetos de grande envergadura. Contudo, devemos atentar para o fato que com o advento das capitanias hereditárias não havia aporte de recursos públicos da Coroa portuguesa e atualmente esta associação exige a colocação dos recursos públicos em consideráveis montantes e com garantias até extravagantes, pois, caso contrário, a iniciativa privada se retrai. As terras estavam sob o controle do Estado, os donatários fariam os investimentos decorrentes da colonização e a Coroa receberia tributos sobre a produção agrícola, mineral ou extrativista.  Porém devemos considerar que o interesse que se mostrou mais contundente foi o de descobrir, conquistar, comercializar e pilhar as riquezas que propriamente colonizar. Este sistema de ocupação da terra mostrou-se ineficaz no Brasil e se tornou a base da questão fundiária não resolvida até os dias de hoje.  O Brasil foi dividido em quinze capitanias hereditárias concedidas a doze donatários com poderes para legislar e decidir sobre qualquer coisa, com exceção da arrecadação de impostos para a Coroa Portuguesa. Destes 12 donatários quatro nunca vieram tomar posse das terras. Dos oito restantes três morreram em circunstâncias dramáticas: Aires da Cunha (? -1536) num naufrágio; Antonio Cardoso de Barros cujo navio naufragou quando voltavam à Portugal e foi devorado pelos índios Caetées e Francisco Pereira Coutinho (?-1547) devorado numa festa antropofágica; Pero Campo Tourinho foi acusado de heresia e preso por seus próprios colonos e enviado aos Tribunais da Inquisição em Portugal, foi absolvido, porém não retornou mais ao Brasil; outros três pouco se interessaram por suas capitanias e apenas Duarte Coelho (1485-1554), primeiro navegador a chegar à Tailândia, fez uma boa administração na Capitania de Pernambuco e Tomé de Souza (1503-1579) na Capitania de São Vicente alcançaram alguma prosperidade. A primeira com a cana de açúcar e engenhos e a segunda com a presença dos jesuítas, a descoberta de ouro de aluvião e a escravização de índios.



As Cartas de Doação garantia à posse e a hereditariedade e as Cartas Forais estabelecia os direitos e deveres dos donatários, colonos e da Coroa tais como distribuir terras; exercer plena autoridade judicial e administrativa inclusive aplicando a pena de morte; escravizar os indígenas e enviá-los à metrópole na condição de escravos; receber a vigésima parte dos lucros sobre o comércio do pau Brasil; entregar 10% de todo o lucro sobre os produtos da terra ao rei; 1/5 de todos os metais preciosos. Em meados do século XVI o sistema já estava falido. Em 1548 o rei decide adotar um governo mais centralizado e institui a figura do governador-geral.  Os donatários possuíam o poder de distribuir as sesmarias que, utilizada em Portugal desde 1375 para combater a crise agrícola e econômica que atingia o país e a Europa e que a peste negra agravara (Lei das Sesmarias, 28.05.1375, promulgada pelo rei Fernando I, 1345-1383). O vocábulo sesmaria derivou-se do termo sesma, e significava 1/6 do valor estipulado para o terreno. Sesmo ou sesma também procedia do verbo sesmar (avaliar, estimar, calcular) ou, ainda, poderia significar um território que era repartido em seis lotes nos quais, durante seis dias da semana, exceto no domingo, trabalhariam seis sesmeiros e que visava garantir o abastecimento na colônia e o sistema de plantation (monocultura, grandes latifúndios e mão de obra escrava) que, aliás, perdura até os dias de hoje aqui e alhures. A soja brasileira é um bom exemplo de plantation, quanto a mão de obra em incontáveis latifúndios são análogas à situação de escravidão. A grande novidade da Lei das Sesmarias é a instituição do princípio de expropriação da propriedade caso a terra não fosse aproveitada ou “desapropriação por interesse social”. Muitos sesmeiros preferiram arrendar suas terras a pequenos lavradores o que dificultava o controle de verificação do cumprimento da exigência do cultivo e da demarcação, o controle da Coroa sobre esse sistema de distribuição de terras, o que estimulou o crescimento da figura do posseiro.

Falb Saraiva Farias

Na verdade as sesmarias permitiram a apropriação de terras (posseiros), muitos deles ricos e poderosos logravam até legalizá-las o que, aliás, não era e não é incomum. Em 2001 a revista Veja (nº 1696 de 18.04.01) publicou reportagem apontando Falb Saraiva de Farias como o maior latifundiário do Brasil com registro de propriedade de terras equivalentes a 1,5% do território nacional (12.713.819 hectares, uma área equivalente à soma dos territórios de Portugal e Suíça). Segundo a revista, na época, não havia registro de nenhuma outra pessoa no mundo dona de uma área de tais proporções, fato que o tornava o maior latifundiário do planeta. À CPI da Grilagem este cidadão declarou que começou a amealhar tal patrimônio quando passou a ser corretor de terras de uma viúva que havia herdado 25.000 hectares, munido de escrituras da década de 1920, que não estabeleciam os limites precisos das áreas, e com a conivência dos cartórios, ele esticava as glebas muito além do que os papéis determinavam. Na época Farias era dono, nas escrituras, de 95% da área do município de Canutama (AM) onde, por sinal, segundo a CPI da Grilagem, foram registradas em cartório a Fazenda Eldorado e Santa Maria cujas áreas somavam 1 bilhão e 500 milhões de hectares, superfície superior a do próprio Estado do Amazonas e a Fazenda Boca do Parnafari com área de 12 bilhões de hectares, superior à superfície do território brasileiro. A maior parte dessas propriedades se sobrepõe a áreas da União. Entretanto, a discrepância entre tal patrimônio e o padrão de vida de Farias revelou-se imensa. Suas roupas são puídas e gastas. Seus modos não revelam nenhuma sofisticação. Caso fosse encontrado na rua, e não na sala de visitas da carceragem da sede da Polícia Federal em Manaus, Farias seria facilmente apontado como um trabalhador braçal. Naquela ocasião seu automóvel era um Gol 1.6, ano de fabricação 1998, a casa em que morava até ser preso tem um quarto só e estava sendo alugada por R$ 450,00, mas segundo a proprietária ele “chorou” e deixou por R$ 400,00. Consta que tem outra casa em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, emprestada a um cunhado. Contudo, afirmava não saber o que era grilagem e que as terras não poderiam ser da União, posto que possuísse 27 quilos de documentos para provar que eram suas. Ou esse sujeito é um “laranjão” ou o mais estúpido dos trambiqueiros que já vi. De acordo com a mesma reportagem, além deste, outros quatro eram os maiores proprietários de terras no Brasil perfazendo 7% da Amazônia Legal distribuídas em nove Estados, a saber: Carlos Medeiros, um fantasma, pois, na verdade, seu principal procurador é Flávio Titan Viegas que reside em Belém (PA) com 12 milhões de hectares; Cecílio do Rego Almeida, empreiteiro, com sete milhões de hectares; Pedro Dotto, fazendeiro, com 2,1 milhões de hectares e Adalberto Cordeiro e Silva, ex-cartorário, com 2 milhões de hectares.



E os conflitos permanecem até hoje. A questão da terra no Brasil lembra muito aquele latifundiário que acompanhado de outro no alto de uma colina afirmou: “toda esta terra, até onde a vista alcança, são minhas. E safado nenhum põe as mãos nelas. Nem eu!”. Conforme a produção ia aumentado a necessidade por extensões cada vez maiores de terra eram necessárias e as sesmarias iam-se se dilatando por doação, compra, herança ou apropriação e o termo sesmeiro passou a ter um significado diferente daquele que lhe era atribuído em Portugal, quer seja, daquele que detinha o poder real para distribuir terras para aquele que se beneficiava da doação. E, neste sentido, a Coroa estimulava a concentração de terras. Mesmo desconhecido durante a Idade Média o sistema de sesmarias proporcionou o aparecimento de verdadeiros feudos onde seus senhores decidam sobre a vida e a morte com o amparo da Igreja Católica e um rei distante, inalcançável e nada interessado pelo bem estar de seus súditos. Feudos que ainda hoje são facilmente identificados em várias regiões do país com técnicas mais modernas de dominação, porém com o mesmo objetivo de espoliação. Um sistema que durou mais de três séculos enraizou-se de tal maneira que, por melhor que se conceba uma divisão de terras, não será boa o suficiente para eliminar suas distorções. Havia quem recebesse uma sesmaria e a retalhava para revender, outros recebiam uma para si, outra para mulher e uma terceira para o filho. Segundo registros históricos os limites eram demarcados de forma imprecisa, caótica e até pitoresca. Como, por exemplo, terras que terminavam “onde mataram o Varela” ou que ia até “a casa onde estão uns cajus grandes”. Um dos meios para a medição de terras consistia em acender um cachimbo, montar à cavalo e seguir em frente, quando o cachimbo apagasse e acabado o fumo marcava-se uma légua. Ora, com um sistema métrico desses não se pode esperar outra coisa senão confusão. A adoção de sesmarias é a causa de toda desordem com relação à terra no Brasil. As capitanias são extintas em 1759, porém a estrutura de poder regional mantém-se até hoje. O Alvará de 1795 reconhecia o posseiro e tentava reestruturar o sistema de sesmarias, na tentativa de manter para a Coroa a responsabilidade na concessão das terras devolutas. Foi suspenso no ano seguinte. Com este documento podemos observar que a posse, a obrigação de demarcação e o cultivo eram partes integrantes nos conflitos entre a Coroa Portuguesa, os fazendeiros e os colonos e a relevância dos grandes proprietários de terras. Somente em 17 de julho de 1822 através da Resolução 76 teve seu fim. E, por quase trinta anos, a prática da posse foi largamente utilizada até a promulgação da Lei de Terras em 1850 (Lei nº 601 de 18.09.1850, regulamentada em 30.01.1854, Decreto Imperial nº 1318) onde as sesmarias antigas foram reconhecidas, sendo inúmeras delas com documentos falsificados; reconheceu também o regime de posses e instituiu a compra como única forma para a obtenção de terras. Na realidade esta lei beneficiou os grandes latifúndios. As terras não ocupadas passaram a ser propriedade do Estado e somente através da compra, à vista, poderiam ser adquiridas. As terras já ocupadas poderiam ser regularizadas como propriedade privada. Apenas em 1930 sofre uma alteração: a desapropriação de terra com interesse público e a propriedade deveria ser indenizada. Com a Constituição Federal de 1946 atribuiu-se à terra uma “função social”. Em 1964 o regime militar promulgou o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504 de 30.11.1964) e  a Lei nº 6.383 de 7.12.1976 que dispõe sobre o processo discriminatório de terras devolutas da União. A Constituição Federal  de 1988 legitimou a desapropriação da terra para fins de reforma agrária e que foi regulamentada pela Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. A Lei nº 11.952 de 25.06.2009 dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. E ainda assim prosseguimos andando em circulos.



Quase dois séculos depois da extinção do sistema de sesmaria a questão da posse da terra ainda gera conflitos, enfrentamentos com vitímas fatais, mantém-se os latifúndios improdutivos, a posse ilegal, a grilagem, a exploração do trabalho alheio em condições análogas à escravidão. Toda essa desatenção, omissão, manutenção de privilégios do Estado subserviente aos interesses dos grandes proprietários que lhe dão sustentação política e econômica e, em inúmeras vezes pelos séculos a fora, estes tornam-se seus gestores obstruindo qualquer tentativa de realizar, por mínima que seja, uma reforma agrária. Nas quatro visitas que fez ao Brasil (1980, 1982, 1991 e 1997) o Papa João Paulo II cobrou do governo brasileiro a implantação da reforma agrária para acabar com a violência no campo e reduzir a miséria no país. Em 2003 indagou aos bispos da CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) “e a reforma agrária no Brasil?” Mesmo diante da inistência do líder católico os sucessivos governos não se sensibilizaram permanecendo inertes, descuidados e irresponsáveis até mesmo estimulando, financiando e protegendo invasores e saqueadores de todas as ordens. Em tese as reinvindicações do MST (Movimento dos Sem Terra) são legítimas, porém na prática encontram-se muito distantes. Como se vê, seja na questão da terra ou em qualquer outra, deparamo-nos com deficiências estruturais e corrigi-las ou minimizá-las suportavelmente não é uma tarefa fácil e demanda um longo tempo e, acima de tudo, muita serenidade, bom senso e  retidão. Atributos, por sinal, cada vez mais escassos na classe política e econômica do nosso país. Desde a terra à vista, passando pela terra doada, herdada, comprada, grilada, ocupada ilegalmente até aquela a prazo ela foi e é – sistematicamente – invadida e saqueada.

CELSO BOTELHO
21.02.2012

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