Existem determinadas coisas que não aprecio. Comunistas e quiabo são duas delas. Mas não estou aqui para falar-lhes sobre minhas preferências ideológicas ou alimentares. Falo dos rótulos. As sociedades sempre rotularam tudo e todos e assim continuarão a fazer. Não tem escapatória. Os rótulos são mais do que indicativos, são instrumentos que identificam, aprovam, reprovam, valorizam ou denigrem isto ou aquilo, este ou aquele. Dia desses assisti um debate entre dois sujeitos que faltou pouco para chegarem às vias de fato durante uma discussão sobre direita e esquerda como se a questão possuísse a importância de decidir o futuro da humanidade. Percebi imediatamente tratar-se mais de uma arengação de facção partidária do que um debate ideológico. O debate que travavam resumia-se no seguinte: quem possuía dinheiro era de direita e certamente conservador e quem não dispunha dele era de esquerda e, portanto, ferrenho defensor de que os mais abastados dividissem com os menos favorecidos e que o Estado deva sempre assumir uma política paternalista para com eles. Ficaram, pois, neste estreito entendimento. Conceitualmente, e só assim, podemos distinguir esquerda-direita, posto que na prática seja necessário considerar muitas outras coisas.
O conceito de esquerda e direita remonta ao final do século XVIII, na França, quando o sistema político constituía-se de três grupos, os Estados Gerais, a saber: o clero, a nobreza e o terceiro estado composto de banqueiros, comerciantes, médicos, artesãos, etc. sendo este último o único obrigado a pagar impostos, além de sofrerem outras limitações como, por exemplo, ocupar cargos públicos. Tal modelo político era injusto e favorecia apenas uma pequena parcela da população o que permitiu a eclosão da Revolução Francesa. Os termos esquerda e direita originaram-se do fato de que os membros do terceiro estado sentavam-se do lado esquerdo do rei (girondinos) enquanto que os membros do clero e da nobreza sentavam-se à sua direita (jacobinos). Isto conceituou a esquerda como oposição e a direita como conservadora. Contudo, não são conceitos estáticos. Por exemplo, uma agremiação partidária pode perfeitamente num momento alinhar-se à esquerda e em outro à direita dependendo de seus interesses. Há muita contradição nos valores de cada grupo. Estas terminologias transcenderam o espaço e o tempo sofrendo constantes mutações ampliando o campo semântico incorporando contribuições de diversas áreas do conhecimento humano. De qualquer maneira a esquerda representa a transformação do mundo, isto é, a revolução. Enquanto a direita procura conservar os valores que entendem intemporais, isto é, contrária a todas as transformações. Dito desta maneira parece simples, mas não é. Norberto Bobbio em seu livro Destra e Sinistra (“Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política”, Editora UNESP, 2001) define assim o conceito: “Convirá também notar que «esquerda» e «direita» são termos que a linguagem política veio utilizando desde o século XIX até aos nossos dias para representar o universo conflitual da política.”
Quando era jovem me deslumbrei com o discurso da esquerda incorporando suas premissas como autênticas e verdadeiras. Mas foi com os anos subsequentes, equipado com mais conhecimento e utilizando ferramentas mais adequadas para sua compreensão, é que logrei êxito e percebi o quanto estava embriagado com seu discurso. Restou, portanto, a direita e, estudando com mais profundidade, pude concluir que não se constituía na oitava maravilha do mundo. O que fazer? O mais racional era apreender a natureza dos fatos examinando-os minuciosamente, decompondo-os e recompondo-os segundo algumas premissas lógicas. Aprendi a estudar a estrutura das questões e, a partir dos resultados apurados, elaborar conclusões e construir possíveis soluções. Tal método pode apresentar falhas, porém tem me servido.
Existem elementos discursivos tanto na esquerda quanto na direita que não devemos desprezar, seja para endossá-los ou refutá-los. A radicalização do discurso, de um lado ou de outro, encobre intenções especificas e alvos muito bem marcados. É preciso examinar as questões em sua estrutura obedecendo a um raciocínio lógico. E isto pode ser alcançado reunindo princípios elementares construídos com o passar dos séculos. São incontáveis os mercenários a serviço de um esquema milimetricamente planejado para ocultar e distorcer conferindo aos fatos as aparências que seus contratadores desejam. Sem contar outro tanto de imbecis que ouvem o galo cantar e sequer sabem que se trata de um galo. É preciso analisar os fatos e as questões colocadas e suas implicações práticas, materiais e, portanto, mais abrangentes. O sujeito não precisa rotular-se ou ser rotulado para estabelecer e desenvolver uma discussão a cerca de qualquer assunto, mas é imprescindível estar equipado para apresentar argumentos que se sustentem, seja para aceitar ou rejeitar seu todo ou suas partes. Observamos corriqueiramente a sistemática simplificação mal intencionada de conceitos complexos e sobre os quais ainda se debruçam os estudiosos tentando compreendê-los com maior abrangência somando-lhe novos significados, atualizando-os e inaugurando outras discussões. Reduzir as díades esquerda-direita, capitalismo-socialismo, privatismo-estatismo, etc. à descrição pura e simples de seus conceitos dicionarizados servem somente para apedeutas, arrivistas e vendilhões que, aliás, constituem-se em expressiva parcela da sociedade brasileira, pelo menos as que detém poder político e econômico. Não é, pois, nada inteligente refutar-se ideias considerando apenas sua procedência e não sua essência. Afinal a flor de lótus nasce na lama.
No Brasil o conceito esquerda-direita sempre esteve mais para as discussões nas academias e nos bares do que na prática propriamente dita. A pobreza dos partidos políticos desde o Império e na República serviu somente para institucionalizar as práticas mais desprezíveis e criminosas das quais temos notícias diariamente. Os interesses pessoais e imediatos sempre são colocados como prioritários em detrimento da sociedade e da nação. Mas, admitamos, os partidos políticos são um dos reflexos da sociedade. Para compreendê-los é necessário estudarmos como a sociedade foi constituída e como e por quem é orientada. As conjunturas somente são compreendidas a partir do estudo das estruturas. Poucos exemplos podem ser descritos onde possamos detectar alguma clareza ideológica.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial ideias autoritárias proliferaram em todo o mundo e a democracia liberal entrou em crise. Entre os anos de 1921 e 1930 aconteceram várias revoltas e rebeliões lideradas pela jovem oficialidade do Exército (Tenentismo) com o objetivo de depor os governos oligárquicos e assumir o poder convencidos da incapacidade dos governos civis. Em 1924 surge a Coluna Prestes que após percorrer quilômetros pelo país e travar combates com as forças governamentais termina em 1927 e os tenentes que dela participaram se juntariam as forças políticas que deflagraram a “Revolução” de 1930. O Movimento Tenentista teve participação na deposição de Vargas em 1945, participando das eleições presidenciais neste mesmo ano e em 1955. Em 1964, quando aconteceu o golpe de estado e na sequência o regime militar, dos cinco generais que ocuparam a presidência da República três eram tenentes à época da “Revolução de 1930” (Castelo Branco, Médici e Geisel). Desde o inicio do século XX o nazismo, o fascismo e o comunismo surgiam como alternativas ao modelo liberal-democrático e no Brasil dois importantes movimentos destacaram-se. De um lado a Ação Integralista Brasileira (1932) de caráter nacionalista e antiliberal e de outro a Aliança Nacional Libertadora (1935) composta por socialistas, comunistas, católicos e liberais (uma composição surreal) para combater o governo Vargas, o imperialismo e o latifúndio. Esta última com apenas quatro meses de fundada foi colocada na ilegalidade e após a revolta liderada pelos comunistas (Intentona Comunista), em novembro daquele mesmo ano o comunismo foi classificado como o inimigo número um do Estado brasileiro. Nestes episódios podem-se distinguir os posicionamentos, mesmo considerando a heterogeneidade de seus membros. Tanto um lado quanto o outro declaravam possuir posições definidas, certas ou erradas. Hoje a miscelânea é tão colossal, a descaracterização foi tão bem planejada, articulada e executada que, mesmo que nos esforcemos muito, é difícil identificar e estabelecer limites entre um discurso e outro.
O regime militar inaugurado em 1964 suprimiu da política brasileira o que restava de uma direita conservadora, liberal, míope e viciada pelos favores estatais criando um ser disforme, estranho e profundamente herético e, concomitantemente, cedeu grandes espaços (imprensa, universidades, sindicatos, etc.) para uma esquerda gananciosa, genocida e muito mais ditatorial que eles próprios. Caso dissesse que abriram caminho para a esquerda seria um eufemismo, os militares criaram as condições necessárias e suficientes para a esquerda tomar o poder e aparelhar o Estado como “nunca antes na história deste país” (como bem gostava de dizer o ex-presidente Lula). Mesmo nesta época a confusão entre o que se mostrava esquerda e direita estava estabelecida. Havia quem não simpatizasse com os postulados da esquerda e encontrava-se inscrito em suas fileiras, o mesmo acontecendo com aqueles engajados na direita. E a raiz de todo esse caos era a luta visceral que travavam pela posse do Estado. Naquela ocasião a direita e a esquerda se articularam para isso e um golpe de estado seria inevitável naquele contexto, restando apenas saber quem o desferiria primeiro se a esquerda ou a direita. Num primeiro momento a direita venceu, mas logo a seguir os militares trataram de podar suas asas evitando que alçassem voos mais altos estabelecendo altitudes que os permitissem caçá-los quando bem quisessem. Quanto a esquerda o regime militar mostrou-se ingênuo ou espetacularmente ignorante ao imaginar que o desmantelamento das organizações clandestinas a destruiria para todo o sempre. Ledo engano. A guerrilha funcionou como cortina de fumaça. Prova disso é que quando o regime militar terminou em 1985 só havia esquerda e até hoje se constitui num pecado mortal simpatizar-se por qualquer coisa que não seja rotulada de esquerda, mesmo não sendo de fato. Observem que todos os partidos políticos brasileiros estão simetricamente alinhados com os postulados socialistas, mesmo que desta forma não se apresentem, na prática atuam em perfeita sintonia com eles. No passado, considerando as ambiguidades, constatamos algumas clarezas nos discursos e nas práticas da direita e da esquerda. Hoje, porém, o discurso socialista encampou o que havia sobrado da direita e prevalece como única corrente capaz de conduzir a vida nacional. Desnecessário dizer que isto acarreta um desastre de proporções apocalípticas que já estamos vivenciando.
Em 1884 foi fundada em Londres, Inglaterra, a Sociedade Fabiana por cientistas, escritores, políticos e intelectuais. O nome da entidade remete ao general Quinto Fábio Máximo (275 a.C.-203 a.C.) nomeado cônsul por cinco vezes e ditador por duas vezes. Quinto Fábio preferiu enfrentar Aníbal (248 a.C.- 183 ou 182 a.C.) pelo método da guerrilha, provocando ataques de surpresa em emboscadas que iam pouco a pouco enfraquecendo o inimigo, pois num confronto aberto suas forças seriam, esmagadas. Os fabianos, ao contrário dos comunistas, não desejam tomar o poder pela revolução e sim gradativamente utilizando-se da lei por meio de reformas sempre objetivando manter seus privilégios, aumentar seus poderes e controlar definitivamente todas as áreas de atuação humana. E estão fazendo isso com sucesso, com o dinheiro do próprio povo, seu consentimento e adesão ao encobrir suas reais intenções. Eles não querem parecer socialistas, mas são até a raiz dos cabelos. Mas um socialismo da elite. Seus métodos vão desde os mais sutis e quase imperceptíveis àqueles mais explícitos, mas todos perfeitamente identificáveis mediante uma análise mais acurada ou a pura e simples percepção dos mais atentos. O Socialismo Fabiano vem minando o espaço que ainda pode estar ocupado pela direita e roendo o capitalismo de dentro para fora até o consumir plenamente estabelecendo uma discussão da esquerda com a esquerda que, no final das contas, será um monólogo. Neste ponto terão alcançado a supremacia e a raça humana a derrocada irreversível. O modelo de denominação do Socialismo Fabiano está implantado. Não são como os comunistas, nazistas e fascistas que sempre pregaram a revolução imediata. O símbolo do Socialismo Fabiano é uma tartaruga. São lentos na estratégia e algumas vezes chegam a perder, outras fingem perder, porém sempre saem ganhando de algum modo, em algum lugar, em algum momento.
A discussão esquerda-direita não faz nenhum sentido no contexto atual pela simples razão de que a direita, na acepção do conceito incluindo todos os acréscimos e supressões que verificou-se ao longo dos anos, está praticamente perdida. Os poucos que ainda possam representar o pensamento da direita não possuem os instrumentos e mecanismos que possam sequer ameaçar o Socialismo Fabiano com reais possibilidades de vir a provocar danos severos impedindo seu avanço no controle definitivo das sociedades. Aliás, a direita no Brasil quer parecer mais esquerda do que a própria esquerda. Os possíveis liberais conservadores empenham-se em esconder-se para não afrontar os socialistas, ora vejam! Fazer com que as pessoas ignorem ou minimizem os fatos fartamente documentados sobre a atuação desta gente em várias partes do mundo trata-se de mais uma de suas estratégias. Estratégia que dilata seus espaços e aumenta sua influência e poder. Não tenho nenhuma fórmula pronta para que se evite a extinção total da direita, mas para sobreviverem a única sugestão que faço é que deixem de ser preguiçosos, acomodados e ignorantes (no sentido de ignorar o que se passa). Esqueçam os rótulos e examinem o conteúdo.
CELSO BOTELHO
27.09.2012
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