quarta-feira, 12 de junho de 2013

QUESTÃO DA TERRA. UM FLAGELO NACIONAL


A questão da terra no Brasil é um hectacombe colossal. Caso essa questão se restringisse à distribuição de terras talvez muitos conflitos poderiam ter sido evitados devido nossa fartura territorial. Porém, a questão da terra abarca inúmeras outras questões tais como culturais, sociais, políticas, econômicas, etc. e interesses pessoais, corporativos e governamentais sensíveis e de difícil acomodação. Tais questões e interesses tendem a emperrar a melhor e mais justa reforma agrária que se possa conceber. Mas isto não deve desestimular a busca de soluções que possam contemplar o maior número possível de pleitos. O Estado deve contar com políticas públicas eficientes para dar conta dos problemas que emperram a atividade agrícola como a concessão de crédito, assistência técnica, comercialização, estocagem, escoamento e programas específicos que integrem toda a cadeia produtiva.  Em outras palavras, sem uma reforma agrária amplamente discutida pela sociedade a questão da terra jamais será resolvida. Todos os governos prometeram reforma agrária e nenhum jamais se empenhou em concretizá-la ou foi impedido de fazê-la por diversas razões. São tantos os complicadores que se interpõe que se tornou mais seguro e conveniente para os governos ignorá-la ou simplesmente distribuir terra dando por encerrada sua responsabilidade e participação no processo. Atitude que cria e fomenta mais e mais conflitos.

A questão da terra remonta a implantação do sistema de capitanias hereditárias em 1534 pelo rei de Portugal D. João III (1502-1557). O sistema de donatários, combinando elementos feudais e capitalistas, havia sido utilizado com êxito no desenvolvimento das ilhas da Madeira e dos Açores, e foi aplicado com menor êxito no arquipélago de Cabo Verde.   Diante de escassos recursos para tomar posse efetiva das terras invadidas em 1500 D. João III decidiu transferir tal tarefa para particulares. Podemos dizer que nosso país nasceu de uma estupenda privatização. Mas, ao contrário do mito sobre a pouca inteligência dos portugueses, a privatização do Brasil lhes foi extremamente favorável. “Podemos dizer que nosso país foi fundado a partir de uma parceria público-privada que hoje é muito difundida como um excelente arranjo para dar conta de obras e projetos de grande envergadura. Contudo, devemos atentar para o fato que com o advento das capitanias hereditárias não havia aporte de recursos públicos da Coroa portuguesa e atualmente esta associação exige a colocação dos recursos públicos em consideráveis montantes e com garantias até extravagantes, pois, caso contrário, a iniciativa privada se retrai.” (TERRA Á VISTA... A PRAZO, INVADIDA E SAQUEADA, Krocodilus, Celso Botelho, 21.02.2012). Elementos da pequena nobreza bem relacionados com a Coroa portuguesa foram aquinhoados com uma faixa de terra. A alta nobreza e os grandes comerciantes não se interessaram pelo empreendimento muito oneroso e arriscado. A estes pequenos nobres eram assegurados direitos e, concomitantemente, assumiam deveres com a Coroa portuguesa como, por exemplo, criar vilas e distribuir terras (sesmarias) a quem quisesse cultivá-las; exercer plenamente o poder judicial e administrativo, inclusive com a prerrogativa de aplicar a pena de morte; escravizar índios para trabalharem nas lavouras e/ou recrutá-los e enviá-los para Portugal na condição de escravos; enviar a vigésima parte dos lucros obtidos com o comércio de pau-brasil; enviar 10% dos lucros oriundos da atividade agrícola à Coroa portuguesa; enviar 1/5 dos metais descobertos à Coroa, entre outros. Nesta privatização do Brasil percebe-se que o rei de Portugal saia grandemente favorecido, posto que o ônus do empreendimento ficasse a cargo do donatário. Diferentemente das privatizações iniciadas no governo Collor (1990-1992), robustecidas no governo FHC (1995-2002), continuadas no governo Lula (2003-2010) e no governo Dilma (2011-2014) na qual o Estado brasileiro reduz escandalosamente o valor real das empresas estatais, aceita de bom grado moedas pobres, assume o passivo com alegria e financia sem qualquer pudor sua compra com dinheiro público e permite aos concessionários praticar todo o tipo de bandalheiras contra o cidadão e também contra o próprio Estado. O sistema de capitanias hereditárias esbarrou em inúmeras dificuldades. Alguns donatários sequer vieram tomar posse das terras que lhe foram concedidas. Não havia pessoas em números suficientes para dar conta de trabalhar nas lavouras; os ataques indígenas eram frequentes, posto não se submeterem à escravidão; os meios de comunicação e transporte eram precários dentro das capitanias e entre elas; a imensa distância entre Corte portuguesa e a colônia dificultava muito as comunicações; os donatários obtinham participação irrisória nos lucros provindos da terra e ainda havia o detalhe que nem todas as capitanias eram propícias ao cultivo de cana de açúcar, produto que interessava ao sistema colonial. Das quinze capitanias apenas duas obtiveram sucesso (São Vicente e Pernambuco). Tal sistema mostrou-se completamente ineficiente e o Regimento de 1548 instalava e regulamentava um novo sistema político: o Governador-Geral. Entretanto somente em 1759 foram extintas pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782), ressalte-se que a hereditariedade foi abolida, mas a denominação capitania não. Mas, de qualquer maneira, o estrago já estava feito.


 O estabelecimento de governadores-gerais não logrou em ordenar, administrar ou minimizar as questões referentes à terra. Ao contrário. De 1549 até 1808 os problemas foram se somando, as demandas só fizeram aumentar e os conflitos exacerbarem-se. No ano de 1821 José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) apresentou um projeto para dar conta das questões da terra. O Patriarca da Independência propunha que as terras concedidas por sesmaria deveriam retornar ao patrimônio nacional caso não tivessem sido cultivadas; a regularização das terras “adquiridas” por posse com o compromisso de serem cultivadas dentro de determinado prazo; uma nova política de venda de terras; proibição de novas doações e, por fim, o projeto visava privilegiar europeus pobres, índios, mulatos e negros forros. Naturalmente que sesmeiros e posseiros viram-se atingidos em seus interesses, pois os obrigavam a cultivar a terra e os proibiam de “adquirir” novas extensões de terras por meio de doações ou da pura e simples apropriação. Os poderes de sesmeiros e posseiros seriam substancialmente limitados e submetidos aos interesses da Coroa. José Bonifácio afastou-se da política e o projeto jamais saiu do papel. Em 1828 o regente Diogo Feijó (1784-1843) apresentou proposta no sentido de democratizar o acesso a terra reduzindo a concentração fundiária. O projeto de Feijó apontava para a necessidade de legitimar as posses dos sesmeiros, desde que as possuíssem por mais de dez anos; os sesmeiros seriam obrigados a cultivar suas terras ou vendê-las no caso de não a cultivarem por um período de cinco anos. Feijó entendeu ainda que o parcelamento das terras deveria ter como base a unidade familiar. Note bem. Nas primeiras décadas do século XIX já havia a percepção de que deveríamos privilegiar a agricultura familiar. Porém, somente em 1996, mais de um século depois, com o Decreto Presidencial nº 1946 foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento de Agricultura Familiar (Pronaf) com o objetivo de financiar projetos individuais ou coletivos que gerassem renda aos agricultores familiares e assentados da reforma agrária. Não se pode negar os avanços obtidos pelo programa como instrumento de apoio aos agricultores familiares, no entanto a distribuição dos recursos contempla as regiões sul e sudeste em detrimento das demais e privilegia os segmentos mais capitalizados da agricultura familiar.  Desde sua implantação a agricultura familiar contribui para o desenvolvimento social e para equilibrar o país movimentando bilhões de reais produzindo mais da metade dos alimentos que por nós é consumido, criando empregos, gerando e distribuindo renda e evitando o êxodo rural. Tudo isso apesar da crônica falta de fiscalização que produz todo tipo de irregularidade. Aliado a isto se registre a falta de qualidade na aplicação dos recursos. Caso houvéssemos caminhado neste sentido desde o inicio do século XIX possivelmente muitos conflitos teriam sido evitados, um maior desenvolvimento verificado e resultados significativos colhidos. A ausência ou insuficiência de políticas de ocupação territorial aliada à incompetência e negligência na elaboração e execução de projetos de reforma agrária e um ordenamento jurídico inadequado são a fonte de todos os conflitos até nossos dias.  Tanto José Bonifácio quanto Diogo Feijó objetivavam dar estímulo a imigração e conter os abusos de sesmeiros e posseiros que detinham grandes porções de terra sem cultivá-las. Em 1842, o governo imperial solicitou à Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado que formulasse modificações e critérios para a obtenção de terras no Brasil. A proposta visava regularizar as concessões de sesmaria e a política de colonização. Este projeto foi apresentado aos deputados, aprovado e jamais posto em prática. Nele constavam estes três dispositivos para a regularização da propriedade territorial: 1) Revalidar as sesmarias caídas em comisso (ou seja, que não cumpriram as condições de doação); 2) Legitimar as posses de período superior a um ano e um dia e que não ultrapassem meia légua quadrada no terreno de cultura e duas léguas nos campos de criação e 3) Registrar e demarcar as posses num prazo de seis meses. Após esse prazo, aplicar multa e, caso após seis anos, não tivessem sido demarcadas nem registradas, seriam incorporadas ao Estado. Por outro lado, ao Estado era atribuído: o imposto territorial anual sobre as terras cultivadas ou não; cobrar taxa de revalidação das sesmarias e legitimação das posses; promover a venda de terras devolutas; proibir novas concessões de sesmarias e proibir novas posses. O período que vai de 1822 a 1850 ficou conhecido como a fase áurea dos posseiros tendo em vista ser a única maneira de “adquirir” terras. Somente em 1850 com a Lei 601 a questão das terras começa de fato a receber atenção do poder público diante da necessidade de atender uma ordenação jurídica que revalidasse as sesmarias e legitimasse as posses que cresciam vertiginosamente e desordenadamente.


A Lei de Terra de 1850 determinava que a terra só poderia ser adquirida através da compra vedando novas concessões de sesmarias e ocupação por posse, excetuando aquelas existentes a dez léguas do limite do território. Esta lei também entendia como terras devolutas aquelas que não se encontravam sob os cuidados do Estado e aquelas que não pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por sesmaria ou ocupadas por posse. Com pouco mais de vinte artigos esta lei procurou dar conta de todos os erros cometidos durante o período colonial e nas duas primeiras décadas do período imperial. A partir dela a terra deixou de ser um privilégio para tornar-se numa mercadoria lucrativa. Tanto a Lei 601 de 1850 e sua regulamentação em 1854, revelaram-se um fracasso. Poucas sesmarias foram revalidadas ou posses foram legitimadas conforme exigia lei. O governo imperial abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei. Esta não fez senão reafirmar e estimular a tradição latifundiária em nosso país. Em 1876 foi criada a Inspetoria de Terras e Colonização, que perdurou até o final do Império não registrando qualquer avanço na questão da terra.


Durante a Primeira República (1889-1930) a transferência de terras devolutas para a iniciativa privada deu-se de forma intensa, sem precedentes. A questão agrária neste período não avançou nem poderia ao observarmos que os membros das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais se revezavam no poder. A hegemonia da Política dos Governadores foi quebrada com o golpe de 1930 liderado por Getulio Vargas (1882-1954) que fora derrotado pelo paulista Julio Prestes (1882-1946) para a sucessão do presidente Washington Luiz (1869-1957). A Constituição Federal de 1934 trazia avanços significativos como garantia a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia e justa indenização; determinava que o trabalho agrícola fosse regulamentado, procurando fixar o homem no campo; previa a organização de colônias agrícolas; consagrava o usucapião e obrigava as empresas agrícolas, localizadas longe dos centros escolares, a manter escolas. Entretanto, não houve tempo hábil para que tais dispositivos fossem implementados devido a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1937 quando nos foi outorgada uma nova Carta Magna mais voltada para os problemas urbanos. A Constituição de 1946 resgatou os dispositivos previstos na Carta de 1934 com a anuência dos representantes dos latifundiários, pois sabiam que a obrigatoriedade de indenização prévia em dinheiro inviabilizaria a reforma agrária. Com o grande impulso da industrialização a partir dos anos 1950 os movimentos dos camponeses intensificam-se e radicalizam-se. Os protestos reivindicavam uma reforma agrária que transformasse o sistema de propriedade da terra. Em 1963, surge o Estatuto do Trabalhador Rural, que passa a garantir ao homem do campo o direito ao salário mínimo, férias, repouso remunerado, aviso prévio e à indenização em caso de demissão. O governo João Goulart (1919-1976) cria a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA). Neste governo a reforma agrária estava presente nos debates políticos, nos partidos, nos movimentos sociais, na Igreja Católica e na opinião pública. Note que mais de 70% da população brasileira estava concentrada nas áreas rurais. João Goulart enfrentou muitos desafios para implantar uma reforma agrária sem obter sucesso. No dia 13 de março de 1964 durante um comício realizado na Central do Brasil assinou decreto desapropriando terras as margens de rodovias, ferrovias e obras públicas. Este ato surtiu efeito contrário ao esperado por Jango (era assim que o chamavam), isto é, obter a aprovação das Reformas de Base no Congresso Nacional. As forças de centro, como o PSD (partido Social Democrata), romperam com o presidente facilitando a eclosão do golpe militar que se encontrava em andamento no dia 31 do mesmo mês. Mas isto é outra história.  Em 30 de novembro de 1964 o governo militar decreta a Lei 4.504 que ficou conhecida como o Estatuto da Terra. Foram criados o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) destinado a dar conta da estrutura fundiária e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA) responsável pela colonização. Em 1970 estes órgãos fundiram-se criando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O resultado da política agrária do regime militar (1964-1985) foi robustecer o poder do latifúndio tradicional e desenvolver o latifúndio moderno das grandes empresas nacionais e multinacionais financiando a implantação de projetos agrícolas, agroindustriais e agropecuários, inclusive com a apropriação de terras de posseiros e índios. Ao invés de soluções criaram-se mais entraves e, consequentemente, mais conflitos. A reforma agrária deve significar transformações estruturais com o objetivo de distribuir os direitos sobre o uso da terra e o controle de sua produção garantindo que todos participem dos benefícios do desenvolvimento. O governo Goulart demonstrou preocupação e empenho com a questão da terra, porém não contava com uma base de sustentação política suficientemente forte para respaldar seu governo que por pouco nem teria existido tal era a rejeição da direita e das Forças Armadas que resistiram em empossá-lo após a renúncia de Jânio Quadros (1917-1992). As leis em nosso país de uma maneira geral e em particular quando se trata de reforma agrária não se instrumentalizam ou são instrumentalizadas inadequadamente. Os governos ou são latifundiários ou os representam ou encontram-se comprometidos com seus interesses e rompem os limites do público com o privado. Com a extensão territorial brasileira os conflitos pela posse da terra não são justificáveis, porém plenamente explicáveis.

Índio rasgando decisão judicial de reintegração de posse

No inicio da década de 1980 surgiu, no Rio Grande do Sul, o Movimento dos Sem Terra (MST) para dar voz à questão da terra, reivindicar uma reforma agrária e sensibilizar a sociedade despertando-a para o problema. Até ai nada de mais. No entanto, o MST esconde suas reais intenções sob o manto de movimento social, mas, na prática, é uma organização criminosa que invade terras, produtivas ou não; depreda patrimônios públicos e privados; incendeia fazendas e plantações; invadem órgãos públicos, empresas privadas e mesmo bens históricos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional (IPHAN); participam de saques a supermercados e sequestros de caminhões que transportam gêneros alimentícios em companhia dos flagelados da seca na tentativa de comover a opinião pública e aumentar seu poder de pressão junto ao governo. As FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) no inicio também se apresentavam como um movimento social com reivindicações que até se justificavam, porém vejam no que se transformou: uma organização criminosa especializada em narcotráfico e sequestro. O MST é a sua versão tupiniquim. Caso o MST houvesse cultivado todas as terras que lhe foram concedidas desde sua fundação haveria um excesso de alimentos capaz de alimentar todos brasileiros e ainda exportar. O MST prossegue impune de suas ações criminosas ao longo de sua existência. A ação mais ousada desta organização criminosa se deu em maio do ano 2000 quando cerca de cinco mil militantes ocuparam prédios públicos em catorze capitais do país, sendo que em três foram sedes regionais do INCRA e em onze escritórios do ministério da Fazenda. Outros 25.000 militantes realizaram invasões pelo interior e passeatas. O objetivo do MST era tomar o poder através de uma revolução e sabe Deus o que viria depois. Em abril do ano passado o movimento promoveu invasões em quinze estados brasileiros. O ministério do Desenvolvimento Agrário em Brasília foi tomado desde as primeiras horas do dia. No Ceará ocuparam a sede do governo estadual e fizeram do espelho d’água banheira para se lavarem e no Rio Grande do Sul, foi invadida uma fazenda que faz testes da vacina contra febre aftosa. As reivindicações por reforma agrária não passa de uma cortina de fumaça para obscurecer os verdadeiros e nefastos objetivos desta organização. A relação dos crimes cometidos por esta entidade é extensa, intensa e intolerável. O MST é uma organização subversiva e terrorista que deve e precisa ser contida e desarticulada. É parte da estratégia da esquerda que lhe abastece o cofre com recursos públicos, estimula a prática de crimes e os afaga carinhosamente. A entidade foi criada para ser o braço armado da esquerda.
 


Além das invasões, ocupações e depredações promovidas pelo MST agora estamos assistindo um ataque generalizado dos indígenas em busca de terras utilizando os mesmos instrumentos do nocivo MST, isto é, invasões, ocupações, depredações, violência física e total desprezo pelas leis brasileiras. Neste último episódio na Fazenda Buriti, em Sidrolândia, a 70 km de Campo Grande, um índio terena rasgou, diante das câmeras de televisão, cópia da decisão judicial de reintegração de posse. No enterro do índio morto durante o enfrentamento o cacique Argeu Reginaldo (este nome não é o que se pode chamar de nome indígena) declarou: “para nós, esse mandado de reintegração não tem validade”. Bem, se os documentos oficiais do governo brasileiro não são reconhecidos pelos índios pode-se entender que todas as demarcações já efetivadas não tem validade alguma e, portanto, todas as reservas não lhes pertencem bem como todas as leis que os favorecem. A questão de demarcações de terras indígenas não é uma questão de se colocar contra ou a favor de suas reivindicações. O problema é mais sério e exige um exame mais apurado. As causas dos embates e enfrentamentos entre índios e não índios dizem mais respeito à História. O que estamos lidando são com suas consequências já postas e outras que serão apresentadas. Não é novidade alguma que inúmeras ONG’s, nacionais e estrangeiras, vêm atuando junto às comunidades indígenas há décadas doutrinando-as, manipulando-as e insuflando-as a rebeliões, planejando e apoiando tática e financeiramente suas investidas contra fazendeiros, empresas e instituições públicas e privadas. Existem algumas premissas das quais o poder público não deveria abrir mão quando se trata de demarcações, concessões, vendas ou arrendamentos. Entre elas não disponibilizar áreas fronteiriças e de estratégico valor econômico e político que assegurem nossa soberania. Cuidados que sistematicamente são ignorados. Verifica-se que os conflitos entre índios e fazendeiros tem se acirrado após a assinatura pelo Brasil da Declaração dos Direitos das Nações Indígenas pelo ex-presidente Lula e o então ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Este acordo só valerá no Brasil caso seja ratificado pelo Congresso Nacional. Menos mal, por enquanto. Porém, nada nos garante que uma vez enviado para aquele covil de mercenários seja aprovado com louvor. Neste caso mais de duzentas nações indígenas se arvorarão no direito de proclamarem sua independência política, econômica e administrativa do Brasil recorrendo a organismos internacionais e as nações que patrocinam inúmeras ONG’s voltadas para a “conscientização” indígena no caso do Brasil não reconhecê-los como independentes. Neste ponto estaremos nos envolvendo num conflito do qual certamente sairemos derrotados caso optarmos em desejar manter a unidade territorial. Derrotados moralmente e belicamente, tendo em vista o notório sucateamento de nossas Forças Armadas. As demarcações de terras indígenas efetuadas em nosso país chegam a ser maior do que dois ou três países europeus juntos, reservas destinadas a uma minoria de silvícolas sem condições humanas e materiais de ocupá-las, protegê-las e muito menos fazê-las produzir o que quer que seja, com ou sem sustentabilidade. A questão da terra no Brasil é complicadíssima, porém a questão das demarcações indígenas são milhares de vezes mais delicadas e devem ser conduzidas com muita sensibilidade e habilidade política para que se possa chegar a soluções minimamente satisfatórias. As concessões feitas pelo governo brasileiro comprometem o país política e economicamente acirrando as disputas ou invés de tentar solucioná-las. É óbvio que esta demanda por terras por parte dos índios foi fabricada e os interessados nela são as ONG’s e governos estrangeiros que as financiam. Em julho de 2012 a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria nº 303 que transforma em norma as 19 condicionantes utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 19 de março de 2009. Entre as normas estão a proibição de revisão de terras já regularizadas (só no Estado do Mato Grosso do Sul, na época, estavam sendo realizados estudos para a revisão dos limites de 36 terras indígenas, quase todas ocupadas por guaranis); permite que o governo realize obras de interesse público, como hidrelétricas e estradas, sem consultar as populações indígenas. As ONGs declararam guerra ao governo brasileiro imediatamente. Não é novidade alguma que nas reservas indígenas atuam madeireiros, garimpeiros, mineradores, contrabandistas, pesquisadores, etc. com sua permissão e em troca do vil metal. Não é raro tomarmos conhecimento de índios enriquecidos, e não foi vendendo artesanato ou produtos derivados da caça e pesca.


 Apesar da vasta extensão territorial a questão da terra apresenta-se com uma infinidade de interesses a serem contemplados. Não há mágica que possa contentar a todos, portanto é inevitável o embate e imprescindível a negociação e a disposição das partes em ceder em algum momento para que também lhe façam concessões. A intransigência dos grupos interessados ao longo da História concorre somente para a produção de vítimas, direta e indiretamente, em todos os lados e de todas as maneiras. A sociedade brasileira precisa intervir urgentemente na questão da terra caso aspire qualquer futuro. As demandas em curso têm a capacidade de fragmentar o território semeando a discórdia generalizada e o ódio, estabelecendo o caos e, consequentemente, longas e cruéis disputas. Não se trata de profecia ou visão apocalíptica. Basta examinarmos os fatos e seus desdobramentos para se concluir que a unidade territorial brasileira está seriamente ameaçada. Aconteceu no Império Romano. Aos poucos os “bárbaros” (não romanos) foram se estabelecendo dentro de suas fronteiras desestabilizando-o e o destruindo por completo. Houve até imperadores de origem “bárbara”. Por certo esta não foi a única causa. O processo para a ruína do Império Romano envolve diversos outros elementos, porém, para ilustrar, basta este. Procurar e apontar responsável pelo desastre na questão da terra é o que mais se faz e menos interessa. Ao fim e ao cabo todos os envolvidos são responsáveis (governo; elites agrárias, empresariais e bancárias; agricultores; índios; quilombolas, Forças Armadas, intelectuais, imprensa, sociedade civil, etc.). Uma vez que o problema seja comum a todos os segmentos estes estão obrigados a promoverem um amplo debate formulando sua solução. Decerto uma solução definitiva com a plena anuência de todos mostra-se impossível, posto que sempre haverá descontentes. Porém, sempre é possível um acordo que satisfaça o maior número de interesses. A intransigência é muito mais devastadora e, persistindo, é um caminho seguro para a desintegração do nosso país.


CELSO BOTELHO
12.06.2013 


terça-feira, 7 de maio de 2013

DO IMPÉRIO À REPÚBLICA A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA É DE FAZ DE CONTA


Sem despender muito esforço pode-se concluir que os partidos políticos no Brasil têm tanta serventia quanto um automóvel sem motor e rodas. A representação política no Brasil sempre esteve a serviço dos poderosos ou por eles mesmos exercida. Em alguns momentos as concessões políticas, econômicas e sociais simplesmente encobrem seus interesses. Isto vem acontecendo mesmo antes do país alcançar sua independência política, posto que a econômica jamais tenha alcançado. A prática partidária é que constrói a tradição, reforça e aprimora o regime representativo. No Brasil esta prática sempre esteve restrita à classe dominante e seus descendentes. As várias rupturas na História política do país jamais permitiu criar uma tradição partidária e as elites sempre se aproveitaram desses momentos para, com os mais diversos rótulos, permanecerem no comando da nação. Antes de 1822 havia apenas duas facções. Uma reunia brasileiros que estavam a favor da independência e outra a ela desfavorável constituída de portugueses. Ambas em alguns momentos, situações e locais com alguma organização, porém sem as características de partidos políticos. Após a independência é que observamos facções favoráveis e contrárias ao imperador D.Pedro I (1798-1834). Convocada a primeira Assembleia Constituinte em 1823 elencamos três de suas características principais, a saber: o anticolonialismo, forte oposição aos portugueses e proibia estrangeiros de ocupar cargo público de representação nacional; o antiabsolutismo que limitava e reduzia os poderes do imperador valorizando e expandindo o poder legislativo, esta certamente foi a que mais desagradou o imperador, posto que o impedisse de dissolver o parlamento e as Forças Armadas obedeceriam ao legislativo e não ao imperador e o classismo que reservava o poder político para os grandes proprietários rurais, o povo não era considerado como cidadão e, assim, não poderia votar e ser votado. Neste projeto o eleitor deveria possuir 150 alqueires de mandioca. Imediatamente a irreverência popular apelidou o projeto de a Constituição da Mandioca. Tal exigência deixava os comerciantes portugueses ricos fora do jogo, caso não possuíssem terras. Em 12 de novembro de 1823 o imperador dissolve a Constituinte e os deputados que resistiram foram presos e expulsos do país, entre os quais José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), um dos fundadores da nação brasileira. No ano seguinte, 1824, D. Pedro I outorga a primeira Constituição do Brasil, uma certidão de nascimento autoritária. Mas, afinal, o poderia se esperar de um membro do absolutismo?


 Foi necessário esperar até o período regencial (1831-1840) para que as organizações partidárias de fato começassem a prosperar. Em 1831 surgem os primeiros partidos: o Partido Restaurador (monarquistas ou caramurus) que defendia o retorno de D. Pedro I; o Partido Republicano que pregava a abolição da monarquia e o Partido Liberal com a bandeira desfraldada pela reforma da Constituição de 1824, mas com a preservação do regime monárquico. Os liberais estavam divididos em duas correntes: os moderados (chimangos) apoiavam o governo e defendiam a manutenção do latifúndio escravista e uma monarquia centralizada e procurava manter a ordem no país e os exaltados (farroupilhas, jurujubas ou radicais) que defendiam uma federação absoluta, a expulsão dos estrangeiros, a perseguição aos negociantes portugueses e a nacionalização do Exército e também defendiam uma maior autonomia para as províncias.  Em 1835, com a eleição do padre Diogo Antonio Feijó (1784-1843) como Regente único não aconteceu uma reorganização partidária. O Império enfrentava uma crise econômica e as revoltas sucediam-se. Tentou-se criar o Partido Progressista, porém apresentou-se um grupo que se denominou como Regressistas que apontava para um recuo do que chamavam de anarquia do liberalismo excessivo. A mensagem não obteve boa acolhida e então resolveram denominá-lo como Partido da Ordem. Este grupo uniu-se aos Restauradores e outros elementos e em 1837 surge o Partido Conservador em oposição ao Partido Liberal que duraria por todo o período imperial e sendo o que mais vezes ocupou o governo. Os Conservadores defendiam a unidade do Império sob o regime representativo e monárquico. A principal característica deste partido estava em resistir as inovações políticas. É fundamental que observemos que todos não divergiam em quase nada ideologicamente. Sendo constituídos por membros da aristocracia é muito natural que seus interesses eram mais convergentes que divergentes. Situação que se repetiu nos anos subsequentes até nossos dias. Isto não significa, contudo, que ficamos privados de debate ideológico, mas sempre com seus interesses políticos e econômicos convergindo para os seus propugnadores, militantes e adeptos. O embate ideológico é, portanto, uma cortina de fumaça para a sociedade, seja de direita ou de esquerda. O fundamental para esta ou aquela ideologia sempre será a conquista, a preservação, manutenção e ampliação de seus poderes, políticos e econômicos.
Os Conservadores defendiam um sistema político no qual o governo, centralizado, agisse imparcialmente garantindo a liberdade de todos. Os liberais por seu turno queriam maior autonomia para as províncias com um governo parlamentar, a extinção do poder moderador, o fim dos senadores vitalícios e alguns a abolição da escravatura e a eleição bienal dos deputados. De 1853 a 1862 Liberais e Conservadores aplainaram as diferenças e reuniram-se num único ministério. Durante este período ficou famosa a frase “Não há nada mais parecido com um Saquarema (conservador) do que um Luzia (liberal) no poder.” Os conservadores ficaram conhecidos como saquarema devido ao seu mais notório líder o Visconde de Itaboraí (Joaquim José Rodrigues Torres, 1802-1872)  possuir propriedades agrícolas na cidade de Saquarema na Província do Rio de Janeiro. Os liberais passaram a ser conhecidos como luzias referindo-se a Vila Santa Luzia do Rio das Velhas, Minas Gerais, onde se travou a batalha na qual a revolta Liberal mineira de 1842 foi sufocada pelo General Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), à época Barão de Caxias.


 Durante o Império o voto era censitário, o eleitor devia comprovar uma renda. Estavam excluídos os escravos, as mulheres, os militares de baixa patente e os religiosos de ordens. De acordo com a Constituição, os votantes reuniam-se em assembleias paroquiais e elegiam os eleitores da província (renda de 200 mil réis anuais) e, num segundo momento, todos os eleitos das várias assembleias paroquiais da província reuniam-se em sua capital indicando os deputados (renda de 400 mil réis anuais), senadores (renda de 800 mil réis anuais) e membros do conselho da província. Abro parênteses para observar que o regime de representação data de 1532 quando, oficialmente, Portugal decidiu tomar posse efetiva destas terras, pode-se então concluir que transcorreu tempo mais do que suficiente para criarmos e aprimorarmos um sistema político-eleitoral-partidário enxuto, funcional e menos suscetível à corrupção, mas deu-se exatamente o contrário. Fecha parênteses. Com a expansão da atividade cafeicultora no Oeste de São Paulo surge uma nova elite e com aspirações diversas que, segundo eles, só se concretizariam com a implantação do regime republicano. Assim, em 1873, é fundado o Partido Republicano Paulista (PRP). Pouco tempo depois é fundado, em Ouro Preto, o Partido Republicano Mineiro (PRM) e em 1882 é fundado, em Porto Alegre, o Partido Republicano Rio Grandense (PRR). Os republicanos estavam divididos entre os que defendiam pegar em armas e depor o imperador D. Pedro II (1825-1891), chamados revolucionários e aqueles que optaram por esperar que o velho imperador morresse para proclamar a República, chamados evolucionistas. Desde sua instalação o sistema monárquico no Brasil mostrou-se inadequado, ineficaz e incapaz de lidar com questões muito sensíveis como a escravocrata, a religiosa, a federativa e a militar. Os grandes proprietários, a Igreja e o Exército não mais emprestavam seu apoio ao monarca, isolando-o. Os republicanos obtiveram a vitória com um golpe militar em 15 de novembro de 1889 e os partidos imperiais foram extintos.


 Na Primeira República (1889-1930) o Partido Republicano Paulista e o Partido Republicano Mineiro exerceram, em certo sentido, uma função nacional. A autonomia concedida aos Estados pela Constituição de 1891 permitiu a expansão de forças sociais e econômicas nas regiões. Estas duas agremiações partidárias dominaram todo o período com a política dos governadores ou do café com leite como também ficou conhecida, além de exercerem grande influência sobre o Congresso Nacional.  A partir da década de 1920 a Primeira República começa a dar sinais de desgastes e por vários motivos: crises nas oligarquias que dominavam, crise na cafeicultura, os movimentos operários expandem-se, as classes médias também crescem em número e questionamentos. Em 1926 a ruptura se cristaliza com a fundação do Partido Democrático. Neste período os partidos mais relevantes possuíam força absoluta no âmbito estadual que lhes assegurava o total domínio em suas regiões e, devido à política dos governadores, a vida política encontrava-se na esfera federal. Sendo assim, apesar dos protestos da sociedade, não havia a mínima disposição para alterar-se esta engrenagem que tanto beneficiava os detentores do poder. Da mesma forma que atualmente. O Partido Democrata, pequeno, rompia com o esquema vigente e pregava essencialmente uma reforma política. Nos dias atuais vários partidos políticos levantam a bandeira das reformas (política, tributária, previdenciária, econômica, social, etc.), porém não há um mínimo de sinceridade neste discurso e sim muita conversa fiada e nenhuma ação para se corrigir as distorções que foram sendo acumuladas com o passar dos anos. Há dezenas de projetos no Congresso Nacional sobre reformas que jamais deixarão de ser projetos, posto que conflitem com os diversos interesses dos parlamentares que obviamente não são os mesmos da sociedade. As reformas que tanto o Brasil carece são aquelas que a sociedade precisa e quer, os parlamentares discutem, o presidente da República concorda e o tempo esquece.


 Com a ascensão de Getúlio Vargas (1882-1954) em 1930 os partidos legais desapareceram, o Congresso Nacional ficou a reboque e os governadores foram substituídos por interventores por ele nomeados. Na Constituição de 1934 foram mantidos os partidos estaduais e confirmou-se o sistema proporcional e a Justiça Eleitoral. Fundado em 1922 o Partido Comunista Brasileiro combatia os anarquistas que enfraqueceram, notadamente após a bem sucedida Revolução Russa de 1917 e o PCB passou a contar com a orientação política e apoio material de Moscou. No ano de 1932 foi fundada a Ação Integralista Brasileira (AIB) com influência nazifascista. Em 1935 foi criada a Aliança Libertadora Nacional (ALN) cujos integrantes eram democratas, tenentes, operários e intelectuais de esquerda e objetivavam dar combate à influência fascista no Brasil. Ambos os partidos tentaram depor o governo Vargas. Em 1935 a ALN, com o apoio do PCB com a Intentona Comunista e a AIB em 1938 tentou tomar de assalto o Palácio da Guanabara. Em 1937 Vargas implantava o Estado Novo extinguindo partidos e organizações políticas. Durante o Estado Novo o Congresso Nacional simplesmente não funcionou e Vargas comandou o país como ditador. Desgastado, em 1945 assinou um decreto que os partidos políticos somente obteriam o registro no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) caso estivessem organizados em todo território nacional, posto que soubesse, de antemão, que seus opositores não preencheriam o exigido e, habilmente, criou dois partidos: o Partido Social Democrata (PSD), ressuscitado hoje pelo ex-prefeito da cidade de São Paulo Gilberto Kassab, que reunia os interventores nos Estados, encarregados de instituições públicas, fazendeiros que tinham suas safras compradas pelo Estado, industriais com acesso ao governo, etc. e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ressuscitado por Ivete Vargas (1927-1984) sobrinha neta de Getúlio em 1980 depois de acirrada disputa pela sigla com Leonel Brizola (1922-2004). Os dirigentes do PTB em 1945 eram líderes sindicais que controlavam verbas previdenciárias compartilhadas com o governo através de institutos classistas. Com esta estratégia os opositores ao governo ficaram restritos a poucos espaços. Porém, conseguiram fundar um partido nacional: a União Democrática Nacional (UDN) cuja base estava assentada em liberais e militares centralizadores e sua obstinada oposição. No entanto, a aliança PSD-PTB vencera as três eleições presidenciais consecutivas (Eurico Gaspar Dutra, 1883-1974, em 1945; Getúlio Vargas em 1950 e Juscelino Kubitscheck em 1955). Somente em 1960 ao apoiar Jânio Quadros (1917-1992) a UDN vence a eleição presidencial para, logo a seguir, romper com o presidente. Pode-se dizer que foi entre 1945 e 1964 que se experimentou de fato alguma democracia no país com eleições competitivas e real alternância no poder. Ao longo deste período o PSD foi o maior partido do Brasil, organizado nacionalmente elegendo as maiores bancadas no Congresso Nacional. Neste período destaca-se também o PSP (Partido Social Progressista), o PR (Partido Republicano), o PDC (Partido Democrata Cristão), o PRP (Partido da Representação Popular).


 As elites e as Forças Armadas desferiram um golpe civil-militar em 1964 apeando do poder o presidente João Goulart (1919-1976). Foi revogado o sistema eleitoral e instituído o bipartidarismo criando a fidelidade partidária, isto é, os eleitos só poderiam votar de acordo com a orientação da cúpula do partido sob pena de perda de mandato. Formou-se a ARENA (Aliança Renovadora Nacional que, por sinal, está sendo preparada a volta e, o mais incrível, por uma jovem que só conheceu a ARENA de farda através de livros) para “dar sustentação” a um governo que se sustentava nas baionetas e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) uma oposição consentida que credenciava seus membros à perseguição, cassação, prisão, tortura, morte, exílio e ao exercício de uma crítica prudente ao regime. O PCB, na clandestinidade, teve enorme influência nas organizações clandestinas que optaram por pegar em armas para dar combate à ditadura militar abraçando diversas correntes (stalinista, trotskista, maoista, castrista, etc.). Deve-se não perder de vista que esses movimentos são anteriores ao golpe civil-militar de 1964. Nenhuma daquelas organizações jamais defendeu o regime democrático. Ao contrário, o objetivo sempre fora substituir o regime democrático ou a ditadura militar pela ditadura comunista. A presidente Dilma Rousseff que se apresenta cinicamente como democrata pertenceu a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares) uma organização de extrema-esquerda armada de inspiração soviética que visava implantar o comunismo no Brasil. Essa gente só foi derrotada na imaginação dos militares daquela época que supunham que perseguir, prender, torturar, exilar e matar guerrilheiros era o suficiente para varrer os comunistas do Brasil. Basta ver quais “cidadãos” vem governando o país ou ocupando postos-chaves na República desde o fim do ciclo militar para confirmar a ingenuidade, ignorância e arrogância dos militares que se dizem vencedores.


 Em fins da década de 1970 e início da de 1980 o regime militar estava desgastado e a sociedade resistia bravamente fazendo-lhe oposição sistemática. O presidente João Figueiredo (1918-1999) retorna com o pluripartidarismo e a ARENA transforma-se em PDS (Partido Democrático Social) e parte de seus quadros transfere-se para o PP (Partido Popular) que, inviabilizado, funde-se com o PMDB. O MDB acrescenta um “P”, pois aquela altura era um partido político forte e representado nacionalmente. Era uma exigência da lei todas as siglas de agremiações partidárias serem precedidas de um “P” (de partido).  É fundado o PDT (Partido Democrático Trabalhista) de cunho essencialmente populista; o PT (Partido dos Trabalhadores) tornou-se o maior partido de oposição ao governo apresentando-se como o partido da ética e da moralidade e, após uma década no poder, verifica-se que todo seu discurso era pura e simples estratégia para alcançar o poder.  O PFL (Partido da Frente Liberal, atualmente Democratas) originou-se de dissidentes do PDS considerado de direita e conservador e abriga em suas hostes antigas oligarquias, principalmente do Nordeste brasileiro. O PPS surgiu do moribundo PCB em 1992 e votou a favor da quebra do monopólio da Petrobrás. Não parece estranho comunista votar contra a estatização? O PSB (Partido Socialista Brasileiro) fundado em 1947 a partir da reorganização de um movimento chamado Esquerda Democrática pregava a ampla liberdade civil e política e defendia o liberalismo econômico. O PSDB (Partido da Social Democracia) fundado por dissidentes do PMDB que discordavam dos rumos políticos do partido especialmente por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte. Aliou-se com o PFL e conseguiram implantar a política neoliberal da qual somos vítimas até hoje, aliás, como diversos outros países do planeta. O PV (Partido Verde) foi criado essencialmente para tratar das questões ambientais, porém se mostra tão fisiológico quanto os demais. Por último temos o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) fundado em 2004 e é composto principalmente por estudantes, trabalhadores, profissionais liberais e dissidentes do Partido dos Trabalhadores. Estes são apenas alguns dos partidos funcionando atualmente. Possuímos a bagatela de quase três dúzias deles que, em síntese, não representam coisa alguma, em momento algum e de forma alguma. Todos estão apenas interessados por participar do poder, barganhar apoio em troca de cargos públicos que possam redundar em benefícios políticos, eleitorais e financeiros. Do período imperial ao republicano certamente o período entre as duas ditaduras foi o mais fértil. Produziu debates e embates empolgantes, profícuos, enriquecedores e extremamente saudáveis para o regime democrático.  Hoje existem partidos sem qualquer representatividade e ideologia. Os discursos são demagógicos, populistas e inverossímeis. Os crimes de lesa-pátria são patentes, a degradação ética e moral são avassaladoras, a impunidade estimula a prática do ilícito beneficiando bandidos de todas as ordens. Os políticos e os partidos em atividade não merecem um mínimo de respeito por parte da sociedade e devem ser repudiados veementemente. Negociam impunemente a soberania da nação e a dignidade do povo. Chamá-los de políticos e partidos é demonstrar muita generosidade e elegância.


 Com esta corja de políticos, salvo raríssimas exceções, e seus partidos (sem exceções) a derrocada é inevitável. O Estado brasileiro caminha célere para a desintegração e só a sociedade mobilizada será capaz de interromper este processo com ações efetivas, consistentes, implacáveis e sistemáticas. Um Estado que não está capacitado a promover o bem-estar, a segurança pública, a justiça, perseguir uma distribuição de renda que reduza consideravelmente as desigualdades não possui legitimidade para se impor e sua existência não faz qualquer sentido.  

CELSO BOTELHO
02.05.2013

sábado, 9 de março de 2013

RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE A VIOLÊNCIA, A GUERRA, O TERRITÓRIO E O PODER NA CULTURA MANDÊ




Existe e sempre existirá uma relação intrínseca entre a violência, a guerra, o território e o poder, pois, em nosso entendimento, estes elementos sempre estiveram presentes na História da humanidade, o que difere são os contextos que estamos a examinando.  Na cultura Mandê não foi diferente e surge de um ato de violência organizada, ou seja, a prática da violência como instrumento estratégico para alcançar-se um fim e, no caso, um fim positivo, pois se trata de preservar a liberdade e por fim a captura e venda de pessoas para o tráfico transaariano. Portanto, rejeitava-se a prática da violência cega, apenas destrutiva, movida tão somente pelo ódio e pelo rancor. Porém, isso não quer dizer que não fosse utilizada. Sundiata Keita (ou Mari Dajta, “O Leão de Mali”, 1190-1255) idealizou, propôs e organizou uma aliança entre as aldeias e, notem-se, compostas de varias etnias, lançando-se à guerra contra Soumaoro Kanté, rei do Sosso, vencida na Batalha de Kirina, margem oriental do Níger (1235). Vitorioso, foi aclamado soberano por haver liderado uma guerra defensiva e por isso justa. De acordo com o nosso entendimento este conceito visa justificar o emprego da violência, da guerra, como sendo elemento fundador do território e instrumento de prevenção de conflitos que nele se sucedem e, por último e não menos importante, uma mecânica de sua difusão e expansão no que resulta sua legitimação ideológica. Como soberano caberia a Sundiata garantir a estabilidade, a paz e prosseguir combatendo o tráfico de escravos e, para isso, há que estabelecer-se o poder político no território que apresenta características como a hereditariedade, moderação, respeito às tradições e aplicação da justiça e, com efeito, tais pressupostos proporcionam a paz e a segurança interrompendo o tráfico de escravos e, concomitantemente, restabelecendo as praticas comerciais e, essencialmente, desenvolvendo o cultivo da terra.

Cidade de Gao, Mali

Entretanto, tal cenário foi modificado com o crescente tráfico de escravos promovido pelos europeus gerando instabilidade e insegurança para os mandingas a exemplo do que acontecera anteriormente com o tráfico transaariano e retornando o banditismo com a finalidade de abastecer o mercado europeu. Esta ação acontecia ora de forma individual, ora em grupos isolados que após atingirem seu objetivo desfaziam-se ou organizados em bandos (com dezenas de indivíduos) que deviam obediência a um chefe. Surge então a figura de Biton (Maamari Kalibali) que promove ações violentas dando início ao Reino de Segu (1720) imprimindo nova configuração ao Estado que passa a ser guerreiro. Então, observamos, as motivações passaram a ser outras e, entre elas, a violência cega como meio de gerir ganhos estritamente políticos e econômicos. Não se tratava, portanto, de uma guerra defensiva e justa, ao contrário. A conquista do poder, sua manutenção e exercício não encontram paralelos entre Sundiata e Biton. Possuem formas e conteúdos diferentes. Mas detectamos um problema comum entre os dois regimes: o momento da sucessão. No primeiro assegura-se a hereditariedade e isto, fatalmente, conduz ao poder soberanos fracos, incapazes, ineptos. No segundo prevalece a conquista do poder e alcançá-lo, mantê-lo e exercê-lo acarretará em disputas dinásticas acirradas onde os pretendentes deverão empenhar-se em provar reunir as qualificações necessárias e ainda, dentro deste tumultuado processo, rompe-se a tradição de ancianidade o que robustecera o conflito sucessório. Biton contradiz-se deliberadamente ao estimular e praticar o tráfico de escravos e declará-lo ilegal. Exige das aldeias compensações para que mantenha seu bando delas afastado e, através da constante ameaça, tem a sua autoridade reconhecida e sua submissão, no entanto, observamos que isto não impede suas ações porque o Estado guerreiro instituído por Biton revela-se um produtor de prisioneiros que são transformados em escravos, atividade que conta com o aperfeiçoamento da guerra e de uma organização territorial dotada de aparatos capazes de lhe dar sustentação no que resulta, inexoravelmente, na desagregação das instituições mandingas mediante o uso contínuo da força e da violência.



A estrutura da civilização Mandê, guardando-se as devidas proporções espaciais e temporais, encontrava-se bem elaborada e definida com esferas distintas (familiar, política, escravista, de castas, de relações matrimoniais, de sistemas de classes etárias). O convívio e as circunstâncias é que irão determinar suas atitudes umas com as outras concorrendo para enfraquecê-las ou reforçá-las, porém, sempre visando obter algum benefício para si. De qualquer maneira comungam dos mesmos interesses sobre o território, sua organização e utilização, mas isso não garante a estabilidade uma vez que os conflitos vão se sucedendo a partir do intenso tráfico de escravos praticado pelos europeus que vemos como fator preponderante para a derrocada do Império Mali. A violência organizada adquire consistência e, neste ponto, toda e qualquer tentativa para o estabelecimento de uma nova ordem que possa debelá-la se mostra incapaz de frustrar sua queda, mesmo porque a guerra e a conquista por território alimentam o tráfico de escravos e afirma-se como padrão comportamental. Porém isso não significa a ausência de resistência da população, mas sim uma nítida prevalência do comércio escravista.

O Império Mali

No território Mandê o caçador (donso) desempenha papel crucial em sua formação. Impõem-se atributos essenciais para o exercício desta função tais como ser forte, corajoso, habilidoso com as armas e direcionados a fins que redundariam em benefícios para a coletividade, pois, de maneira contrária, a utilização da força geraria a violência bruta, destrutiva, que macularia o território selvagem (wula), ou seja, aquele que ainda não sofrera com a intervenção humana. Podemos dizer que este lugar era de suma importância como fonte de recursos indispensáveis à sobrevivência das aldeias e, portanto, fator decisivo de sua estabilidade, pois dali retirava o sustento de sua população, os meios para acelerar e manter o seu crescimento e, sobretudo, desenvolver as atividades agrárias. Para se alcançar estes objetivos a utilização do território deveria obedecer a critérios consoantes com a sua localização e poderiam destinar-se a realização de rituais, a caça, a pesca, a colheita de frutos, ervas medicinais, pasto ou fornecer lenha. Era incumbência do caçador desbravar este território e nele entranhar-se para dar combate às forças do mal revestidos de seu poder místico, sobrenatural e vencê-las purificando-o e permitindo que os objetivos fossem alcançados. Entende-se então que o caçador domina a violência através do uso disciplinado da força justificando-a. Para reforçarmos este conceito recorremos ao autor textualmente: “a apropriação intelectual do espaço produz as informações práticas necessárias à caça.” O território, após a ação do caçador, está apto à realização de cultos e atividades produtivas o que resulta em desenvolvimento social. Neste contexto, entretanto, há uma outra direção que não a hereditariedade, ou seja, o aprendizado e, em ambas, os mesmos atributos se fazem necessários. Para o aprendizado não há um limite de tempo pré-fixado, ele será ministrado enquanto o mestre avaliar que o aprendiz não se encontra suficientemente preparado para o exercício da função. Dentro desta estrutura de aprendizado está identificado um chefe que deve possuir a capacidade de evitar conflitos, mostrar-se generoso, imparcial e – acima de tudo – demonstrar poder místico que garanta a abundância da caça e afaste os perigos a ela inerentes. Caso tais atributos deixem de existir uma assembléia irá destituí-lo, mas permanecendo na função prosseguirá distribuindo conselhos, concedendo permissão para irem à caça e através de suas orações e poderes sobrenaturais assegurará a prosperidade. Sua recompensa por tão valiosos préstimos será ficar com uma parte da caça e desfrutar do respeito de todos. As relações entre violência, guerra, território e poder na estrutura Mandê convergem ou divergem dependendo das circunstâncias, porém, observamos que se apresentam ordenadas por interesses e isto favoreceu sua manutenção durante certo período  e, ao mesmo tempo,  concorreu para o seu ápice e declínio.


Vale lembrarmos que o tráfico de escravos de origem européia encontrou um ambiente favorável e uma situação bem estabelecida que proporcionasse sua intensificação. No século XVII e no decorrer do XVIII e XIX a maciça demanda por mão de obra escrava para abastecer o Novo Mundo promove a desintegração do espaço político Mandê em decorrência do uso da violência bruta, das guerras, do banditismo. Ressaltamos que este processo teve início com o tráfico transaariano e depois grandemente expandido pelos europeus.


CELSO BOTELHO
09.03.2013

bibliografia
Turco, Ângelo – SEMÂNTICAS DA VIOLÊNCIA, Guerra, Território e Poder na África Mandinga (VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, º 35, p. 125-149, jan./jun. 2006)

www.mw.pro.br/antrop_fabuloso_reino_dos_mansas_do_mali.pdf

 


domingo, 3 de fevereiro de 2013

NOSSOS FILHOS, NOSSA VIDA






            Desde crianças, sonhamos, desejamos e buscamos sentido para a nossa vida.
            Ainda na infância, almejamos brinquedos, passeios, brincadeiras,
amigos...
            Nossos anseios são eternos. Estamos sempre em busca de algo que nos faça sentir mais completos, mais vitoriosos diante da luta diária que é viver.
            Sejam imediatos ou prolongados, estamos sempre “desejando” e buscando algo que faça valer a pena a nossa existência e que nos impulsione a prosseguir com entusiasmo a jornada da vida.
            Defendemos nossos princípios, teorizamos nossas concepções e nos “apegamos” às nossas crenças com autoridade e veemência.
            Até que um dia, tudo pode mudar...
            Percebemos que o que desejamos não tem a ver com a nossa existência e os nossos desejos primitivos. Nossa existência não é mais uma expressão singular, individual.
            Percebemos que tudo que antes era valorizado, sobreposto e demasiadamente defendido pode virar uma hipótese, um “complemento”, algo secundário.
            Percebemos que todas as teorias que envolvem praticidade, independência, individualismo, concepção própria, domínio sobre emoções e atitudes, simplesmente perdem parte de sua credibilidade.
            Percebemos que somos vulneráveis, que temos medo da perda.
            Percebemos que o nosso eu não é mais suficiente para estarmos completos.
            Percebemos que não somos mais os mesmos porque não somos mais nós mesmos.
            Percebemos que somos mais do que nós mesmos.  
            Percebemos a dificuldade de explicar porque só pode ser sentido e não teorizado.
            Percebemos que nossa vida não é mais nossa. Nossa vida se multiplica em outra.
            Tudo isso acontece quando percebemos que...
            ... somos pais e agora nossos filhos são nossa vida.


            Que o nosso viver esteja pautado em proporcionar aos nossos filhos, extensão de nós mesmos, uma vida baseada em valores e princípios éticos, preparando esta geração para a formação de uma sociedade mais justa, solidária, consciente e, principalmente, feliz.
            A educação faz parte desse processo! Juntos perceberemos isso.



ADRIANA FRÓES B. SOARES
03.02.2013
(Especialista em Literatura Africana)

sábado, 26 de janeiro de 2013

O DESCASO COM O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL



O Pensador de Rodin (François-Auguste-René Rodin, 1840-1917)

É lamentável o modo como tratamos a História e a Memória nacional. As iniciativas para a preservação dos acervos históricos são insuficientes, incompletas e, não raras às vezes, levadas a termo de maneira inadequada, equivocada e leviana. A memória nacional não recebe a atenção que lhe é devida e, sistematicamente, é manipulada, distorcida, omitida e ignorada. Marc Bloch definiu magistralmente a História quando disse que é a ciência dos homens no tempo ensinando-nos o “método regressivo”, ou seja, a compreensão do passado pelo presente e vice-versa (Apologia da História ou o Ofício do Historiador, Marc Bloch, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002). Portanto, para compreendermos o presente é necessário investigarmos e compreendermos o passado para planejarmos o futuro. A História do Brasil sofre, desde sempre, uma série de sortilégios que acabam por se cristalizarem como verdades absolutas e irrefutáveis e, sabemos, na História não existem verdades, nem absolutas e muito menos irrefutáveis. O estudo da História permite que nos tornemos cidadãos reflexivos, críticos, atuantes e conscientes de nossas responsabilidades.

Biblioteca da Alexandria na Antiguidade


Biblioteca de Alexandria inaugurada em 2002

O descaso e má conservação pelos patrimônios históricos e culturais no Brasil são, com toda certeza, caso de polícia. Sejam eles edifícios, monumentos, reservas ambientais, livros, documentos escritos ou iconográficos, etc. É lamentável termos que admitir que muito da História do Brasil perdeu-se devido a negligência, omissão e decisão de muitos brasileiros. A história e a memória brasileira sobrevivem a duras penas. A necessidade de preservar documentos remonta aos séculos V e IV a.C. A mais antiga biblioteca de que se tem notícia foi formada no século VII a.C. por Assurbanipal (669 - 627 a.C.), rei da Assíria, em Nínive. Apesar de serem um povo guerreiro davam muita importância à preservação de arquivos, relatórios e documentos que eram gravados em placas de argila. Devemos lembrar que nas civilizações da Antiguidade a leitura era um privilégio praticamente exclusivo de reis, nobres, conselheiros, escribas e sacerdotes. A Biblioteca Real de Alexandria, no Egito, foi uma das maiores bibliotecas do Mundo Antigo existindo até a Idade Média quando foi destruída por incêndio, este acontecimento divide os historiadores, mas isso é outra história. Edificada por Alexandre, O Grande (356 a.C.-323 a.C.), era o centro de cultura entre os séculos IV e III a.C. reunia mais de 500.000 rolos de papiros e pergaminhos. Na Idade Média as bibliotecas refluem para os mosteiros, conventos e palácios e destina-se a uma minoria. No século XIII com o surgimento das universidades, como de Sorbonne, França, grandes bibliotecas universitárias são formadas, assim os centros monásticos deixam de ser os únicos centros da vida intelectual. Muitos textos científicos e matemáticos foram copiados por muçulmanos e cristãos entre os séculos VIII e IX. Do século XIV ao XVI surgem as primeiras bibliotecas senhoriais e reais e representam a riqueza, o poder e o prestigio. Neste período também se desenvolve a noção de que as bibliotecas devam ser locais de estudo, reflexão e desenvolvimento de atividades intelectuais. As bibliotecas reais só eram acessíveis aos sábios e tal situação somente inverte-se a partir do século XVII tornando-se públicas. No entanto, este processo começou no século XIV com a difusão do papel e a invenção da tipografia. Em 1731 Benjamim Franklin (1706-1790) funda a primeira biblioteca de empréstimo, destinada aos membros que pagavam quotas (EUA). O aparecimento de livros, instituições educacionais e bibliotecas no Brasil ocorrem somente a partir de 1549 com o Governo Geral em Salvador (BA). Os livros no Brasil Colonial eram escassos, devido à proibição de Portugal de se instalar uma tipografia no país e da censura imposta pela Inquisição Católica. Em 1773, com a extinção da Companhia de Jesus, a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782) as bibliotecas jesuítas tiveram seus acervos amontoados em lugares impróprios durante anos e em 1851 pouca coisa poderia se aproveitar. Somente com o Decreto 25 de 30.11.1937 (Lei do Tombamento) que a preservação do patrimônio histórico e cultural recebeu a atenção do Estado. A Constituição Federal de 1988 consolidou sua importância no Art. 216 parágrafo primeiro (“o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”). A legislação que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados encontra-se na Lei 8.159 de 08 de janeiro de 1991 e em seu Artigo 1º Capítulo 1º determina que “é dever do poder público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivo, como instrumento de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico e como elemento de prova e informação”. Apesar da legislação os arquivos brasileiros encontram-se em situação lastimável. Carecem de programas de gestão documental e políticas de recolhimento de documentos; incontáveis documentos acumulados e sem identificação, controle e arranjo; precárias condições de infraestrutura e escassos recursos financeiros destinados aos arquivos; falta de espaço físico e condições inadequadas para a preservação e conservação dos acervos; os recursos humanos e de pessoal especializado são escassos e, pasmem, apesar da vivermos na Era da Informática pouco é utilizada. A biblioteca é, por definição, uma instituição social de muita complexidade e de uma importância ímpar no sistema de comunicação humano, pois, afinal, é sua responsabilidade a preservação e transmissão da cultura. Caso fossemos apresentar todos os exemplos de descaso, omissão, ingerência, inércia e incompetência ao lidar com nosso patrimônio histórico e cultural ao longo do tempo este artigo transformar-se-ia em um livro com incontáveis páginas.


Tapume colocado por imposição da Defesa Civil na Biblioteca Nacional, RJ.

O descaso e a má conservação são flagrantes

A Biblioteca Nacional, situada na Cinelândia, Rio de Janeiro, é o cartão de visitas do descaso e má conservação. Pode-se dizer que seus primórdios encontram-se no terremoto que sacudiu Lisboa, Portugal, em 1755 e provocou vários incêndios entre eles o da Real Biblioteca destruindo considerável parte de seu acervo. D. José I (1714-1777) e o Marques de Pombal lançaram-se na empreitada de reunir o que havia restado organizando no Palácio da Ajuda uma nova biblioteca. Em 1807 contava com cerca de sessenta mil peças, entre livros, manuscritos, incunábulos (livro impresso nos primeiros tempos da imprensa com tipos móveis entre 1450 e 1500. Eram livros que imitavam o manuscrito), gravuras, mapas, moedas e medalhas. Este acervo foi trazido ao Brasil após a vinda da família real em 1808, uma parte em 1810 e o restante em 1811. Assim que chegou ao Brasil o primeiro lote do acervo teve como destino o andar superior do Hospital Terceira do Carmo (alvará de 27.07.1810) na atual Rua do Carmo, no centro do Rio de Janeiro. Como as instalações não eram adequadas em 29.10.1810 editou decreto que marca à fundação da Biblioteca Nacional no lugar que havia as catacumbas dos religiosos do Carmo. Seu acervo foi sendo ampliado com o passar dos anos com aquisições e doações e, principalmente, pelas “propinas” tornadas obrigatórias pelo alvará de 12 de setembro de 1805 para todo material impresso nas tipografias de Portugal e na Imprensa Régia no Rio de Janeiro. Este alvará culminou no Decreto 1825/20.12. 1907 (Decreto de Depósito Legal), ainda em vigor. Após a Independência, em 1822, passou a ser propriedade do Império do Brasil, sua compra consta da Convenção Adicional ao Tratado de Amizade e Aliança firmado entre Brasil e Portugal, em 29 de agosto de 1825. Pelos bens deixados no Brasil a Família Real foi indenizada em dois milhões de libras esterlinas, desse valor, oitocentos contos de réis destinavam-se ao pagamento da Real Biblioteca, que passou a se chamar Biblioteca Imperial e Pública da Corte. Em 1858, a Biblioteca foi transferida para a rua do Passeio, número 60, no Largo da Lapa, e instalada no prédio que tinha por finalidade abrigar de forma melhor o seu acervo. Seu atual prédio teve sua pedra fundamental lançada em 15 de agosto de 1905, durante o governo de Rodrigues Alves (1848-1919). A inauguração se realizou em 29 de outubro de 1910, durante o governo Nilo Peçanha (1824-1919). O edifício da Biblioteca Nacional possui estilo eclético e mescla elementos neoclássicos com art-nouveau, cujo projeto é assinado pelo notável engenheiro Francisco Marcelino de Sousa Aguiar (1855-1935) que, entre outras obras, destacamos o Palácio Monroe (originariamente Saint Louis) projetado para Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis nos Estados Unidos em 1904. Souza Aguiar o concebeu para ser montado nesta exposição e remontado no Rio de Janeiro em 1906 (quando recebeu o nome de Palácio Monroe em homenagem ao presidente norte-americano James Monroe, 1758-1831, criador do Pan Americanismo). Em 1974 o traçado do metrô do Rio de Janeiro foi desviado para não afetar as fundações do Palácio Monroe sendo tombado pelo governo do estado. Em 1976 foi demolido sob o argumento de que o edifício prejudicava a visão ao Monumento dos Mortos da Segunda Guerra Mundial. O presidente Ernesto Geisel (1907-1996) não concedeu o decreto federal de tombamento. Eis um dos mais gritantes exemplos de descaso com a história e memória.

Eis mais descaso e má conservação na Biblioteca Nacional

 Ao visitar a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro experimenta-se um misto de revolta, tristeza e profunda irritação ao constatar-se seu completo abandono. São rachaduras nas paredes e pisos, infiltrações, pinturas descascadas, fachada deteriorada, instalações elétricas precárias (gambiarras, benjamins), em setembro de 2012 o Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro vistoriou e notificou a Biblioteca Nacional por irregularidades no sistema de incêndio e pânico apontando sério risco de incêndio no prédio principal e do anexo, hidrantes obstruídos, porta bloqueadas, etc. Em 2012 houve três vazamentos de água e apenas num deles foram destruídos mais de dois mil periódicos e quando a chuva é mais intensa os livros que estão no último andar são atingidos. O ar condicionado não funciona e em abril do ano passado um vazamento alagou o prédio danificando centenas de exemplares de jornais. A temperatura ideal para a conservação do acervo é de 22ºC, porém livros, jornais e revistas estão em caixas de papelão, nos corredores da biblioteca. Nos armazéns de obras gerais e raras a temperatura chega a 50Cº. A falta de ar condicionado propicia a proliferação de cupins e traças. O prédio foi construído há mais de 100 anos com uma capacidade de abrigar 800 mil volumes e hoje abrigam mais de nove milhões de peças. Isto compromete o edifício centenário. A Biblioteca Nacional guarda o maior acervo do país e está entre as dez maiores do mundo de acordo com a UNESCO. A última reforma foi executada há mais de trinta anos quando fizeram uma revisão das instalações elétricas e hidráulicas, isso demonstra de forma cabal o desprezo pela cultura que nossos governantes não se cansam de demonstrar. Em dezembro do ano passado e janeiro deste ano os servidores da instituição protestaram nas escadarias do edifício fantasiados de diabo e balançando leques numa alusão ao ambiente de trabalho e pesquisa. Na ocasião exibiram também faixas que criticavam as condições de segurança do prédio (por determinação da Defesa Civil foram colocados tapumes no exterior do prédio onde o reboco estava caindo) e solicitava a intervenção da ministra da Cultura (sic) Marta Suplicy. Solicitar alguma coisa dessa gente não é eficiente e nem apropriado. O que se deve fazer é exigir, xingar e ameaçar e, caso não resolva, partir-se para as vias de fato. De acordo com a bibliotecária Suzana Martins, que trabalha com acervos raros, na Real Biblioteca de d. João VI, "há obras dos séculos XVII e XVIII definitivamente destruídas por conta da falta de manutenção e de uma política de conservação. É uma grande ameaça à nossa cultura." Em seu acervo a BN possui obras do século XI ( o Minúsculo 2437, manuscrito minúsculo grego dos Evangelhos. Contém 220 fólios, livro numerado por folhas, dos quatro Evangelhos, 20 x 15 cm, com exceção de Mateus 1,1-17 e foi escrito em uma coluna por página, em 24 linhas por página. É o mais antigo manuscrito do Novo Testamento da América Latina). Segundo consta, o ministério da Cultura irá destinar cerca de R$ 70 milhões para obras emergenciais na Biblioteca Nacional. O que se pode traduzir que ninguém está interessado em resolver coisa alguma, apenas “dar um jeitinho”. Os problemas são graves e, portanto, não pedem paliativos e sim soluções definitivas. O presidente da Fundação Biblioteca Nacional Galeno Amorim simplesmente manda algum subalterno dizer que “muito tem sido feito”, porém não explica o que exatamente está fazendo muito, mas podemos bem imaginar o que seja. Este cidadão foi candidato a deputado estadual pelo PT de São Paulo, mas não foi eleito. No entanto, foi recompensado. Entre suas propostas estava a de abolir o serviço militar obrigatório substituindo por prestação de serviços à comunidade; distribuição de “vale-cultura” para os alunos da rede estadual; regulamentar e reconhecer o papel das “lan houses” e outras baboseiras. Foi também secretário de Cultura de Ribeirão Preto na administração Antonio Palocci, nosso velho e conhecido multiplicador de dinheiro. Foi nomeado em 2004 para a Biblioteca Nacional como coordenador geral de Livro e Leitura da Biblioteca Nacional. Para fazer jus ao nome Galeno Amorim deveria realizar um diagnóstico impecável sobre as condições da entidade que preside e pleitear suculentos recursos para retirar a Biblioteca Nacional da UTI.

Bolsa-Remição, mais uma realização do governo petista

 A solução para a Biblioteca Nacional está na construção o mais urgente possível de um novo e moderno edifício que possa acomodar todo seu acervo dentro das condições adequadas; contratar profissionais especializados; alocar os recursos necessários à sua manutenção, aquisições, projetos e atividades correlatas à instituição, etc. Porém, tais medidas se mostrarão inúteis caso a mentalidade de nossos governantes permaneçam estacionárias, congeladas e dispostas a mutilar e fazer desaparecer o patrimônio histórico e cultural da nação brasileira. Um povo sem memória caminha célere e inexoravelmente para uma completa e irreversível ruína. Mas enquanto a Biblioteca Nacional está se liquefazendo o governo petista publicou Diário Oficial da União a Portaria 276 de 20.06.2012 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) que determina que quanto mais livros um condenado ler por ano, menor será sua pena. A medida vale apenas para os detidos nas quatro penitenciárias federais. Cada obra literária terá que ser lida no prazo de 21 a 30 dias. Por cada livro lido pode ser feita a remição de quatro dias.  Ao final de um ano, o preso poderá ter feito a leitura de 12 livros e, assim, descontado, no máximo, 48 dias na sua pena. Ao final da leitura, cada preso terá que fazer uma resenha, que será submetida a uma comissão, coordenada por um pedagogo. Qual será o valor de uma resenha dentro dos presídios? Mais uma benesse para os criminosos. Ficou, pois, criada a Bolsa-Remição. Talvez o governo petista deseje formar uma geração de bandidos ilustrados e que venham a cometer seus crimes com mais elegância. Nada contra os presidiários terem acesso à leitura, pelo contrário. Mas este acesso não pode redundar em diminuição da pena. E, de mais a mais, existem outras prioridades no sistema carcerário brasileiro que, segundo o ministro (sic) da Justiça José Eduardo Cardozo, prefere morrer a nele se internado.

Biblioteca Nacional da China (Exterior)



Biblioteca Nacional da China (Interior)

CELSO BOTELHO
25.01.2013