A questão da terra no Brasil é um hectacombe colossal. Caso essa questão se restringisse à distribuição de terras talvez muitos conflitos poderiam ter sido evitados devido nossa fartura territorial. Porém, a questão da terra abarca inúmeras outras questões tais como culturais, sociais, políticas, econômicas, etc. e interesses pessoais, corporativos e governamentais sensíveis e de difícil acomodação. Tais questões e interesses tendem a emperrar a melhor e mais justa reforma agrária que se possa conceber. Mas isto não deve desestimular a busca de soluções que possam contemplar o maior número possível de pleitos. O Estado deve contar com políticas públicas eficientes para dar conta dos problemas que emperram a atividade agrícola como a concessão de crédito, assistência técnica, comercialização, estocagem, escoamento e programas específicos que integrem toda a cadeia produtiva. Em outras palavras, sem uma reforma agrária amplamente discutida pela sociedade a questão da terra jamais será resolvida. Todos os governos prometeram reforma agrária e nenhum jamais se empenhou em concretizá-la ou foi impedido de fazê-la por diversas razões. São tantos os complicadores que se interpõe que se tornou mais seguro e conveniente para os governos ignorá-la ou simplesmente distribuir terra dando por encerrada sua responsabilidade e participação no processo. Atitude que cria e fomenta mais e mais conflitos.
A questão da terra remonta a implantação do sistema de capitanias hereditárias em 1534 pelo rei de Portugal D. João III (1502-1557). O sistema de donatários, combinando elementos feudais e capitalistas, havia sido utilizado com êxito no desenvolvimento das ilhas da Madeira e dos Açores, e foi aplicado com menor êxito no arquipélago de Cabo Verde. Diante de escassos recursos para tomar posse efetiva das terras invadidas em 1500 D. João III decidiu transferir tal tarefa para particulares. Podemos dizer que nosso país nasceu de uma estupenda privatização. Mas, ao contrário do mito sobre a pouca inteligência dos portugueses, a privatização do Brasil lhes foi extremamente favorável. “Podemos dizer que nosso país foi fundado a partir de uma parceria público-privada que hoje é muito difundida como um excelente arranjo para dar conta de obras e projetos de grande envergadura. Contudo, devemos atentar para o fato que com o advento das capitanias hereditárias não havia aporte de recursos públicos da Coroa portuguesa e atualmente esta associação exige a colocação dos recursos públicos em consideráveis montantes e com garantias até extravagantes, pois, caso contrário, a iniciativa privada se retrai.” (TERRA Á VISTA... A PRAZO, INVADIDA E SAQUEADA, Krocodilus, Celso Botelho, 21.02.2012). Elementos da pequena nobreza bem relacionados com a Coroa portuguesa foram aquinhoados com uma faixa de terra. A alta nobreza e os grandes comerciantes não se interessaram pelo empreendimento muito oneroso e arriscado. A estes pequenos nobres eram assegurados direitos e, concomitantemente, assumiam deveres com a Coroa portuguesa como, por exemplo, criar vilas e distribuir terras (sesmarias) a quem quisesse cultivá-las; exercer plenamente o poder judicial e administrativo, inclusive com a prerrogativa de aplicar a pena de morte; escravizar índios para trabalharem nas lavouras e/ou recrutá-los e enviá-los para Portugal na condição de escravos; enviar a vigésima parte dos lucros obtidos com o comércio de pau-brasil; enviar 10% dos lucros oriundos da atividade agrícola à Coroa portuguesa; enviar 1/5 dos metais descobertos à Coroa, entre outros. Nesta privatização do Brasil percebe-se que o rei de Portugal saia grandemente favorecido, posto que o ônus do empreendimento ficasse a cargo do donatário. Diferentemente das privatizações iniciadas no governo Collor (1990-1992), robustecidas no governo FHC (1995-2002), continuadas no governo Lula (2003-2010) e no governo Dilma (2011-2014) na qual o Estado brasileiro reduz escandalosamente o valor real das empresas estatais, aceita de bom grado moedas pobres, assume o passivo com alegria e financia sem qualquer pudor sua compra com dinheiro público e permite aos concessionários praticar todo o tipo de bandalheiras contra o cidadão e também contra o próprio Estado. O sistema de capitanias hereditárias esbarrou em inúmeras dificuldades. Alguns donatários sequer vieram tomar posse das terras que lhe foram concedidas. Não havia pessoas em números suficientes para dar conta de trabalhar nas lavouras; os ataques indígenas eram frequentes, posto não se submeterem à escravidão; os meios de comunicação e transporte eram precários dentro das capitanias e entre elas; a imensa distância entre Corte portuguesa e a colônia dificultava muito as comunicações; os donatários obtinham participação irrisória nos lucros provindos da terra e ainda havia o detalhe que nem todas as capitanias eram propícias ao cultivo de cana de açúcar, produto que interessava ao sistema colonial. Das quinze capitanias apenas duas obtiveram sucesso (São Vicente e Pernambuco). Tal sistema mostrou-se completamente ineficiente e o Regimento de 1548 instalava e regulamentava um novo sistema político: o Governador-Geral. Entretanto somente em 1759 foram extintas pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782), ressalte-se que a hereditariedade foi abolida, mas a denominação capitania não. Mas, de qualquer maneira, o estrago já estava feito.
A Lei de Terra de 1850 determinava que a terra só poderia ser adquirida através da compra vedando novas concessões de sesmarias e ocupação por posse, excetuando aquelas existentes a dez léguas do limite do território. Esta lei também entendia como terras devolutas aquelas que não se encontravam sob os cuidados do Estado e aquelas que não pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por sesmaria ou ocupadas por posse. Com pouco mais de vinte artigos esta lei procurou dar conta de todos os erros cometidos durante o período colonial e nas duas primeiras décadas do período imperial. A partir dela a terra deixou de ser um privilégio para tornar-se numa mercadoria lucrativa. Tanto a Lei 601 de 1850 e sua regulamentação em 1854, revelaram-se um fracasso. Poucas sesmarias foram revalidadas ou posses foram legitimadas conforme exigia lei. O governo imperial abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei. Esta não fez senão reafirmar e estimular a tradição latifundiária em nosso país. Em 1876 foi criada a Inspetoria de Terras e Colonização, que perdurou até o final do Império não registrando qualquer avanço na questão da terra.
Durante a Primeira República (1889-1930) a transferência de terras devolutas para a iniciativa privada deu-se de forma intensa, sem precedentes. A questão agrária neste período não avançou nem poderia ao observarmos que os membros das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais se revezavam no poder. A hegemonia da Política dos Governadores foi quebrada com o golpe de 1930 liderado por Getulio Vargas (1882-1954) que fora derrotado pelo paulista Julio Prestes (1882-1946) para a sucessão do presidente Washington Luiz (1869-1957). A Constituição Federal de 1934 trazia avanços significativos como garantia a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia e justa indenização; determinava que o trabalho agrícola fosse regulamentado, procurando fixar o homem no campo; previa a organização de colônias agrícolas; consagrava o usucapião e obrigava as empresas agrícolas, localizadas longe dos centros escolares, a manter escolas. Entretanto, não houve tempo hábil para que tais dispositivos fossem implementados devido a implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1937 quando nos foi outorgada uma nova Carta Magna mais voltada para os problemas urbanos. A Constituição de 1946 resgatou os dispositivos previstos na Carta de 1934 com a anuência dos representantes dos latifundiários, pois sabiam que a obrigatoriedade de indenização prévia em dinheiro inviabilizaria a reforma agrária. Com o grande impulso da industrialização a partir dos anos 1950 os movimentos dos camponeses intensificam-se e radicalizam-se. Os protestos reivindicavam uma reforma agrária que transformasse o sistema de propriedade da terra. Em 1963, surge o Estatuto do Trabalhador Rural, que passa a garantir ao homem do campo o direito ao salário mínimo, férias, repouso remunerado, aviso prévio e à indenização em caso de demissão. O governo João Goulart (1919-1976) cria a Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA). Neste governo a reforma agrária estava presente nos debates políticos, nos partidos, nos movimentos sociais, na Igreja Católica e na opinião pública. Note que mais de 70% da população brasileira estava concentrada nas áreas rurais. João Goulart enfrentou muitos desafios para implantar uma reforma agrária sem obter sucesso. No dia 13 de março de 1964 durante um comício realizado na Central do Brasil assinou decreto desapropriando terras as margens de rodovias, ferrovias e obras públicas. Este ato surtiu efeito contrário ao esperado por Jango (era assim que o chamavam), isto é, obter a aprovação das Reformas de Base no Congresso Nacional. As forças de centro, como o PSD (partido Social Democrata), romperam com o presidente facilitando a eclosão do golpe militar que se encontrava em andamento no dia 31 do mesmo mês. Mas isto é outra história. Em 30 de novembro de 1964 o governo militar decreta a Lei 4.504 que ficou conhecida como o Estatuto da Terra. Foram criados o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) destinado a dar conta da estrutura fundiária e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrícola (INDA) responsável pela colonização. Em 1970 estes órgãos fundiram-se criando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O resultado da política agrária do regime militar (1964-1985) foi robustecer o poder do latifúndio tradicional e desenvolver o latifúndio moderno das grandes empresas nacionais e multinacionais financiando a implantação de projetos agrícolas, agroindustriais e agropecuários, inclusive com a apropriação de terras de posseiros e índios. Ao invés de soluções criaram-se mais entraves e, consequentemente, mais conflitos. A reforma agrária deve significar transformações estruturais com o objetivo de distribuir os direitos sobre o uso da terra e o controle de sua produção garantindo que todos participem dos benefícios do desenvolvimento. O governo Goulart demonstrou preocupação e empenho com a questão da terra, porém não contava com uma base de sustentação política suficientemente forte para respaldar seu governo que por pouco nem teria existido tal era a rejeição da direita e das Forças Armadas que resistiram em empossá-lo após a renúncia de Jânio Quadros (1917-1992). As leis em nosso país de uma maneira geral e em particular quando se trata de reforma agrária não se instrumentalizam ou são instrumentalizadas inadequadamente. Os governos ou são latifundiários ou os representam ou encontram-se comprometidos com seus interesses e rompem os limites do público com o privado. Com a extensão territorial brasileira os conflitos pela posse da terra não são justificáveis, porém plenamente explicáveis.
Índio rasgando decisão judicial de reintegração de posse
Além das invasões, ocupações e depredações promovidas pelo MST agora estamos assistindo um ataque generalizado dos indígenas em busca de terras utilizando os mesmos instrumentos do nocivo MST, isto é, invasões, ocupações, depredações, violência física e total desprezo pelas leis brasileiras. Neste último episódio na Fazenda Buriti, em Sidrolândia, a 70 km de Campo Grande, um índio terena rasgou, diante das câmeras de televisão, cópia da decisão judicial de reintegração de posse. No enterro do índio morto durante o enfrentamento o cacique Argeu Reginaldo (este nome não é o que se pode chamar de nome indígena) declarou: “para nós, esse mandado de reintegração não tem validade”. Bem, se os documentos oficiais do governo brasileiro não são reconhecidos pelos índios pode-se entender que todas as demarcações já efetivadas não tem validade alguma e, portanto, todas as reservas não lhes pertencem bem como todas as leis que os favorecem. A questão de demarcações de terras indígenas não é uma questão de se colocar contra ou a favor de suas reivindicações. O problema é mais sério e exige um exame mais apurado. As causas dos embates e enfrentamentos entre índios e não índios dizem mais respeito à História. O que estamos lidando são com suas consequências já postas e outras que serão apresentadas. Não é novidade alguma que inúmeras ONG’s, nacionais e estrangeiras, vêm atuando junto às comunidades indígenas há décadas doutrinando-as, manipulando-as e insuflando-as a rebeliões, planejando e apoiando tática e financeiramente suas investidas contra fazendeiros, empresas e instituições públicas e privadas. Existem algumas premissas das quais o poder público não deveria abrir mão quando se trata de demarcações, concessões, vendas ou arrendamentos. Entre elas não disponibilizar áreas fronteiriças e de estratégico valor econômico e político que assegurem nossa soberania. Cuidados que sistematicamente são ignorados. Verifica-se que os conflitos entre índios e fazendeiros tem se acirrado após a assinatura pelo Brasil da Declaração dos Direitos das Nações Indígenas pelo ex-presidente Lula e o então ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. Este acordo só valerá no Brasil caso seja ratificado pelo Congresso Nacional. Menos mal, por enquanto. Porém, nada nos garante que uma vez enviado para aquele covil de mercenários seja aprovado com louvor. Neste caso mais de duzentas nações indígenas se arvorarão no direito de proclamarem sua independência política, econômica e administrativa do Brasil recorrendo a organismos internacionais e as nações que patrocinam inúmeras ONG’s voltadas para a “conscientização” indígena no caso do Brasil não reconhecê-los como independentes. Neste ponto estaremos nos envolvendo num conflito do qual certamente sairemos derrotados caso optarmos em desejar manter a unidade territorial. Derrotados moralmente e belicamente, tendo em vista o notório sucateamento de nossas Forças Armadas. As demarcações de terras indígenas efetuadas em nosso país chegam a ser maior do que dois ou três países europeus juntos, reservas destinadas a uma minoria de silvícolas sem condições humanas e materiais de ocupá-las, protegê-las e muito menos fazê-las produzir o que quer que seja, com ou sem sustentabilidade. A questão da terra no Brasil é complicadíssima, porém a questão das demarcações indígenas são milhares de vezes mais delicadas e devem ser conduzidas com muita sensibilidade e habilidade política para que se possa chegar a soluções minimamente satisfatórias. As concessões feitas pelo governo brasileiro comprometem o país política e economicamente acirrando as disputas ou invés de tentar solucioná-las. É óbvio que esta demanda por terras por parte dos índios foi fabricada e os interessados nela são as ONG’s e governos estrangeiros que as financiam. Em julho de 2012 a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria nº 303 que transforma em norma as 19 condicionantes utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 19 de março de 2009. Entre as normas estão a proibição de revisão de terras já regularizadas (só no Estado do Mato Grosso do Sul, na época, estavam sendo realizados estudos para a revisão dos limites de 36 terras indígenas, quase todas ocupadas por guaranis); permite que o governo realize obras de interesse público, como hidrelétricas e estradas, sem consultar as populações indígenas. As ONGs declararam guerra ao governo brasileiro imediatamente. Não é novidade alguma que nas reservas indígenas atuam madeireiros, garimpeiros, mineradores, contrabandistas, pesquisadores, etc. com sua permissão e em troca do vil metal. Não é raro tomarmos conhecimento de índios enriquecidos, e não foi vendendo artesanato ou produtos derivados da caça e pesca.
CELSO BOTELHO
12.06.2013