É lamentável o modo como tratamos a História e a Memória nacional. As iniciativas para a preservação dos acervos históricos são insuficientes, incompletas e, não raras às vezes, levadas a termo de maneira inadequada, equivocada e leviana. A memória nacional não recebe a atenção que lhe é devida e, sistematicamente, é manipulada, distorcida, omitida e ignorada. Marc Bloch definiu magistralmente a História quando disse que é a ciência dos homens no tempo ensinando-nos o “método regressivo”, ou seja, a compreensão do passado pelo presente e vice-versa (Apologia da História ou o Ofício do Historiador, Marc Bloch, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2002). Portanto, para compreendermos o presente é necessário investigarmos e compreendermos o passado para planejarmos o futuro. A História do Brasil sofre, desde sempre, uma série de sortilégios que acabam por se cristalizarem como verdades absolutas e irrefutáveis e, sabemos, na História não existem verdades, nem absolutas e muito menos irrefutáveis. O estudo da História permite que nos tornemos cidadãos reflexivos, críticos, atuantes e conscientes de nossas responsabilidades.
Biblioteca da Alexandria na Antiguidade
O descaso e má conservação pelos patrimônios históricos e culturais no Brasil são, com toda certeza, caso de polícia. Sejam eles edifícios, monumentos, reservas ambientais, livros, documentos escritos ou iconográficos, etc. É lamentável termos que admitir que muito da História do Brasil perdeu-se devido a negligência, omissão e decisão de muitos brasileiros. A história e a memória brasileira sobrevivem a duras penas. A necessidade de preservar documentos remonta aos séculos V e IV a.C. A mais antiga biblioteca de que se tem notícia foi formada no século VII a.C. por Assurbanipal (669 - 627 a.C.), rei da Assíria, em Nínive. Apesar de serem um povo guerreiro davam muita importância à preservação de arquivos, relatórios e documentos que eram gravados em placas de argila. Devemos lembrar que nas civilizações da Antiguidade a leitura era um privilégio praticamente exclusivo de reis, nobres, conselheiros, escribas e sacerdotes. A Biblioteca Real de Alexandria, no Egito, foi uma das maiores bibliotecas do Mundo Antigo existindo até a Idade Média quando foi destruída por incêndio, este acontecimento divide os historiadores, mas isso é outra história. Edificada por Alexandre, O Grande (356 a.C.-323 a.C.), era o centro de cultura entre os séculos IV e III a.C. reunia mais de 500.000 rolos de papiros e pergaminhos. Na Idade Média as bibliotecas refluem para os mosteiros, conventos e palácios e destina-se a uma minoria. No século XIII com o surgimento das universidades, como de Sorbonne, França, grandes bibliotecas universitárias são formadas, assim os centros monásticos deixam de ser os únicos centros da vida intelectual. Muitos textos científicos e matemáticos foram copiados por muçulmanos e cristãos entre os séculos VIII e IX. Do século XIV ao XVI surgem as primeiras bibliotecas senhoriais e reais e representam a riqueza, o poder e o prestigio. Neste período também se desenvolve a noção de que as bibliotecas devam ser locais de estudo, reflexão e desenvolvimento de atividades intelectuais. As bibliotecas reais só eram acessíveis aos sábios e tal situação somente inverte-se a partir do século XVII tornando-se públicas. No entanto, este processo começou no século XIV com a difusão do papel e a invenção da tipografia. Em 1731 Benjamim Franklin (1706-1790) funda a primeira biblioteca de empréstimo, destinada aos membros que pagavam quotas (EUA). O aparecimento de livros, instituições educacionais e bibliotecas no Brasil ocorrem somente a partir de 1549 com o Governo Geral em Salvador (BA). Os livros no Brasil Colonial eram escassos, devido à proibição de Portugal de se instalar uma tipografia no país e da censura imposta pela Inquisição Católica. Em 1773, com a extinção da Companhia de Jesus, a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782) as bibliotecas jesuítas tiveram seus acervos amontoados em lugares impróprios durante anos e em 1851 pouca coisa poderia se aproveitar. Somente com o Decreto 25 de 30.11.1937 (Lei do Tombamento) que a preservação do patrimônio histórico e cultural recebeu a atenção do Estado. A Constituição Federal de 1988 consolidou sua importância no Art. 216 parágrafo primeiro (“o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”). A legislação que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados encontra-se na Lei 8.159 de 08 de janeiro de 1991 e em seu Artigo 1º Capítulo 1º determina que “é dever do poder público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivo, como instrumento de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico e como elemento de prova e informação”. Apesar da legislação os arquivos brasileiros encontram-se em situação lastimável. Carecem de programas de gestão documental e políticas de recolhimento de documentos; incontáveis documentos acumulados e sem identificação, controle e arranjo; precárias condições de infraestrutura e escassos recursos financeiros destinados aos arquivos; falta de espaço físico e condições inadequadas para a preservação e conservação dos acervos; os recursos humanos e de pessoal especializado são escassos e, pasmem, apesar da vivermos na Era da Informática pouco é utilizada. A biblioteca é, por definição, uma instituição social de muita complexidade e de uma importância ímpar no sistema de comunicação humano, pois, afinal, é sua responsabilidade a preservação e transmissão da cultura. Caso fossemos apresentar todos os exemplos de descaso, omissão, ingerência, inércia e incompetência ao lidar com nosso patrimônio histórico e cultural ao longo do tempo este artigo transformar-se-ia em um livro com incontáveis páginas.
Tapume colocado por imposição da Defesa Civil na Biblioteca Nacional, RJ.
O descaso e a má conservação são flagrantes
A Biblioteca Nacional, situada na Cinelândia, Rio de Janeiro, é o cartão de visitas do descaso e má conservação. Pode-se dizer que seus primórdios encontram-se no terremoto que sacudiu Lisboa, Portugal, em 1755 e provocou vários incêndios entre eles o da Real Biblioteca destruindo considerável parte de seu acervo. D. José I (1714-1777) e o Marques de Pombal lançaram-se na empreitada de reunir o que havia restado organizando no Palácio da Ajuda uma nova biblioteca. Em 1807 contava com cerca de sessenta mil peças, entre livros, manuscritos, incunábulos (livro impresso nos primeiros tempos da imprensa com tipos móveis entre 1450 e 1500. Eram livros que imitavam o manuscrito), gravuras, mapas, moedas e medalhas. Este acervo foi trazido ao Brasil após a vinda da família real em 1808, uma parte em 1810 e o restante em 1811. Assim que chegou ao Brasil o primeiro lote do acervo teve como destino o andar superior do Hospital Terceira do Carmo (alvará de 27.07.1810) na atual Rua do Carmo, no centro do Rio de Janeiro. Como as instalações não eram adequadas em 29.10.1810 editou decreto que marca à fundação da Biblioteca Nacional no lugar que havia as catacumbas dos religiosos do Carmo. Seu acervo foi sendo ampliado com o passar dos anos com aquisições e doações e, principalmente, pelas “propinas” tornadas obrigatórias pelo alvará de 12 de setembro de 1805 para todo material impresso nas tipografias de Portugal e na Imprensa Régia no Rio de Janeiro. Este alvará culminou no Decreto 1825/20.12. 1907 (Decreto de Depósito Legal), ainda em vigor. Após a Independência, em 1822, passou a ser propriedade do Império do Brasil, sua compra consta da Convenção Adicional ao Tratado de Amizade e Aliança firmado entre Brasil e Portugal, em 29 de agosto de 1825. Pelos bens deixados no Brasil a Família Real foi indenizada em dois milhões de libras esterlinas, desse valor, oitocentos contos de réis destinavam-se ao pagamento da Real Biblioteca, que passou a se chamar Biblioteca Imperial e Pública da Corte. Em 1858, a Biblioteca foi transferida para a rua do Passeio, número 60, no Largo da Lapa, e instalada no prédio que tinha por finalidade abrigar de forma melhor o seu acervo. Seu atual prédio teve sua pedra fundamental lançada em 15 de agosto de 1905, durante o governo de Rodrigues Alves (1848-1919). A inauguração se realizou em 29 de outubro de 1910, durante o governo Nilo Peçanha (1824-1919). O edifício da Biblioteca Nacional possui estilo eclético e mescla elementos neoclássicos com art-nouveau, cujo projeto é assinado pelo notável engenheiro Francisco Marcelino de Sousa Aguiar (1855-1935) que, entre outras obras, destacamos o Palácio Monroe (originariamente Saint Louis) projetado para Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis nos Estados Unidos em 1904. Souza Aguiar o concebeu para ser montado nesta exposição e remontado no Rio de Janeiro em 1906 (quando recebeu o nome de Palácio Monroe em homenagem ao presidente norte-americano James Monroe, 1758-1831, criador do Pan Americanismo). Em 1974 o traçado do metrô do Rio de Janeiro foi desviado para não afetar as fundações do Palácio Monroe sendo tombado pelo governo do estado. Em 1976 foi demolido sob o argumento de que o edifício prejudicava a visão ao Monumento dos Mortos da Segunda Guerra Mundial. O presidente Ernesto Geisel (1907-1996) não concedeu o decreto federal de tombamento. Eis um dos mais gritantes exemplos de descaso com a história e memória.
Eis mais descaso e má conservação na Biblioteca Nacional
Bolsa-Remição, mais uma realização do governo petista
Biblioteca Nacional da China (Exterior)
CELSO BOTELHO
25.01.2013
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