terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A CORTE NO RIO DE JANEIRO: A BUROCRACIA E A CORRUPÇÃO, SEGUNDO LUIZ MARROCOS



Trecho de uma das cartas de Luíz Marrocos

Luíz Joaquim dos Santos Marrocos nasceu em Lisboa em 17 de julho de 1781 e faleceu no  Rio de Janeiro em 17 de dezembro de 1838. Exerceu o cargo de bibliotecário da Real Biblioteca Portuguesa, tanto na cidade de Lisboa como no Rio de Janeiro e oficial maior da secretaria de estado dos negócios do reino português e brasileiro. Em 1807, com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil Luiz Marrocos aderiu à resistência portuguesa para combater na guerra peninsular (1807-1814) chegando ao posto de capitão. Em 1811 é indicado pelo próprio príncipe regente D. João como o encarregado de acompanhar o deslocamento do acervo real, de aproximadamente 60.000 volumes de Portugal para o Rio de Janeiro. Como escriba, Luíz Joaquim dos Santos Marrocos aparece em dois importantes documentos do Império brasileiro: a primeira constituição do império de 1824 e a primeira lei de patente datada de dezembro de 1830 concedida a Joaquim Marques para uma cadeira de rodas, primeira patente sob vigor da primeira lei de patentes do Brasil independente). As cerca de duas centenas de cartas que deixou são uma fonte de imensa importância. Contudo, podemos encontrar em Manuel Viriato Correia Baima do Lago Filho (1884-1967) no seu livro “Histórias da nossa História” (1921) um ácido crítico de tais cartas devotando menosprezo pela figura humana que Marrocos demonstra ao referir-se ao Brasil. Não vamos colocar em discussão a irritação, indignação e o orgulho da pátria (mesmo reconhecendo suas mazelas) manifestado por Viriato Correia ou os exageros descritos ou as frustrações pessoais e profissionais de Luiz Marrocos em suas missivas, posto não ser este o território para tal exploração. Numa coisa podemos concordar: as cartas de Marrocos são de grande valia para os pesquisadores e historiadores como fontes e, neste sentido, confrontadas com outros registros, escritos ou não, para que se possa tentar reconstituir o fato passado o mais fiel possível ainda que parcialmente, uma vez que seja impossível uma reconstituição plena, irretocável e irrefutável.

Usaremos, pois, alguns trechos das cartas enviadas por Luíz Marrocos ao seu pai e irmã em Portugal com a finalidade de demonstrarmos as similaridades com o tempo presente passados mais de dois séculos. As estruturas que sustentam nosso país permanecem praticamente intocáveis. Houve períodos na República que aconteceram transformações substancias, porém estas não foram capazes de abalar o sólido edifício no qual se abriga a classe dominante e, mesmo considerando épocas de conquistas políticas, sociais e até econômicas, a sociedade brasileira foi e é, sistematicamente, submetida aos interesses do capital que lhe subtrai, de uma forma ou de outra, ganhos efetivados. Ouvimos não raras às vezes, vozes em diversas classes sociais que procuram explicar nosso comportamento como produto de uma herança cultural. Ora, não podemos negar a força de uma herança cultural, mas, ao mesmo tempo, não há nada que impeça que nos desfaçamos das péssimas práticas que contenham. Portanto, a disseminação desta “explicação” é notoriamente oportuna para a classe dominante e muito cômoda para a classe dominada, no caso desta optar de assim ser porque, caso contrário, existem diversas maneiras de rebelar-se e estas não passam necessariamente pelos canais da violência, mesmo que elas venham a acontecer durante o percurso fato que, aliás, não é incomum na História humana. O conhecimento histórico ventila nossa percepção, nos conduz à reflexão e nos habilita a desenvolver soluções para as questões presente.

Sobre a burocracia Luiz Marrocos a descreve numa estrofe:
Com arte e com engano
Se passa meio ano;
Com engano e arte
Se passa a outra parte.

Não há como negar que tal artifício ainda é empregado pelos governantes de nosso país. Observamos, ao longo dos anos, que tanto no Executivo como no Legislativo e com maior incidência no Judiciário tudo quanto possa ser postergado o é sem maior ou menor constrangimento dificultando a vida do cidadão e o funcionamento do país para favorecer interesses suspeitos, escusos e, via de regra, ilegais. A palavra arte não possui, neste caso, seu sentido comum seja no passado ou no presente, funciona como meios engendrados para a pratica do ilícito ou imoral. Conhecemos inúmeros casos onde se posterga decisões cruciais até onde se permita e não é raro que quando são adotadas tragam consigo imprecisões, dubiedade, inadequações, discriminações, alijamentos, etc. Caso exemplar disso foi a abolição da escravatura no Brasil. Um processo longo, incompleto, discriminatório, segregador e, principalmente, regado com muitas lágrimas, sofrimentos e sangue. Ainda hoje, no século XXI, a população negra sofre todo tipo de preconceitos e segregações. Os movimentos afro-descendentes; as entidades destinadas à sua integração, divulgação de sua cultura há muito incorporada à vida dos brasileiros, sua capacitação, etc.; o reconhecimento das populações quilombolas e seu direito à terra; a política de cotas; a legislação vigente que pretende atendê-los ou a Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino da História da África e da cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino públicos e privados não são suficientes para nos redimirmos de mais de três séculos de escravidão. Com isso não queremos dizer que sejam inúteis, porém as podemos considerar como tímidas e, em dadas circunstâncias, até hipócritas. A legislação que coíba toda e qualquer prática discriminatória é bem-vinda, indispensável e deve ser aplicada com rigor. Mas nenhuma lei em nenhuma parte do mundo e sobre o que for será capaz, sozinha, de corrigir as imperfeições do caráter humano ou resolver-lhes qualquer coisa. Elas apenas regulam, disciplinam, auxiliam e fiscalizam o que está determinado. Portanto, além dos meios ora apontados, é preciso que sejam aperfeiçoados continuamente e, o mais importante, será que cada um de nós façamos uma reflexão despida de conceitos equivocados e preconceitos arraigados para nos transformarmos em seres melhores expurgando-os definitivamente.

Outra estrofe recolhida em algum pasquim da época por Luíz Marrocos e muito sugestiva sobre a corrupção denunciada pela imprensa envolvendo o barão de Jundiaí (Decreto de 13.08.1813) Joaquim Jose de Azevedo (1781-1835), responsável pela área de compras da Casa Real no Paço (atual Praça XV) e o visconde de São Lourenço Francisco Bento Maria Targini, responsável pelo Erário Real.

Furta Azevedo no Paço,
Targini rouba no Erário;
E o povo aflito carrega
Pesada cruz ao Calvário.

Quando o barão de Jundiaí foi agraciado com o título de visconde (Decreto de 11.02.1818) correu outra estrofe que, segundo consta, a autoria é atribuída à população e ao visconde de São Lourenço.

Quem furta pouco é ladrão.
Quem furta muito é barão.
Quem mais furta e esconde.
Passa de barão a visconde.

Então, concluímos, a corrupção é uma pandemia nacional. Observamos também que há dois séculos era tratada com irreverência, jocosidade e até mesmo como sendo usual na gestão dos dinheiros públicos. Nosso comportamento hoje não difere, exceto pelo desuso de compor trovinhas. Lemos e assistimos diariamente nos mais diversos meios de comunicação matérias e charges que fazem chacota com os mais diversos tipos de crime, desde drogas até a corrupção. Atualmente ocupam às páginas dos noticiários as movimentações atípicas de membros do Judiciário. Não iremos esmiuçar o caso, porém registramos que dada sua gravidade notamos que, para a população, é entendido como um fenômeno perfeitamente conhecido e previsto quando não deveria ser assim. Apesar dos poderes estarem conformados como independentes é o Judiciário que aplica e fiscaliza as leis e, portanto, teoricamente, em condições de coibir as práticas nocivas perpetradas por todos os cidadãos desde o mais humilde até o presidente da República, porém a constatação deste episódio e vários outros arruína sua reputação. É lamentável observarmos a apatia da sociedade com relação à corrupção, desvio, malversação e desperdício dos dinheiros públicos. As estrofes do século XIX e as charges dos séculos XX e XXI devem servir para alertar-nos, refletirmos e repudiarmos veementemente os mandos e desmandos nesta Terra dos Papagaios.

CELSO BOTELHO
18.01.2012


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